O caos nas urgências do Hospital de Santo André, em Leiria, unidade do Centro Hospitalar de Leiria, é recorrente, sobretudo, quando o frio aperta e o número de casos de gripe, problemas respiratórios e crónicos disparam.
O problema não é exclusivo deste hospital. Um pouco por todo o País sucedem-se as notícias de relatos de utentes que se queixam de horas infindáveis de espera por uma consulta.
Se por um lado os doentes reclamam as horas de espera e a dificuldade no atendimento, por outro os profissionais de saúde lamentam a falta de respostas nos cuidados de saúde primários e a iliteracia em saúde de muitos portugueses.
Licínio Carvalho, administrador do Centro Hospitalar de Leiria (CHL), admite que a solução para este problema deveria passar pelo alargamento dos horários nos centros de saúde e unidades de saúde familiares (USF), confessando que veria com bons olhos o regresso de um serviço idêntico aos SAP (Serviço de Atendimento Permanente), encerrados pela tutela.
“Não faz sentido que todos os centros de saúde funcionem 24 horas, até porque têm recursos limitados. Agora, se calhar, fará todo o sentido que em zonas urbanas como Leiria exista um atendimento 24 horas diariamente”, desafia Licínio Carvalho, referindo que é necessário voltar a debater o regresso de um serviço permanente em alguns locais.
O administrador do CHL salienta que não existindo uma alternativa aos utentes, “é difícil dizer-lhes: não venham ao hospital”. Por isso, insiste na criação de um atendimento permanente ao nível dos cuidados primários, que “até poderá funcionar no hospital”.
“Temos é de estruturar as coisas e adequá-las de maneira a que a resposta esteja sinalizada e acessível, de modo a que a população saiba onde tem que ir numa situação não urgente.”
Foi a pensar em soluções que o CHL vai pôr em prática um modelo importado de um hospital do Norte do País. “Vamos reencaminhar os doentes pouco ou não ur- gentes para os centros de saúde.” O processo não vai [LER_MAIS] deixar ninguém sem consulta no próprio dia.
Licínio Carvalho explica que o hospital irá contactar os cuidados de saúde primários para verificar se há vagas para atender um doente que chegue à urgência e seja classificado como não urgente.
“Agendamos de imediato uma consulta aberta no próprio dia, com a indicação da hora de atendimento. Este processo, que está a começar, permitirá dar uma resposta adequada ao utente”, garante.
O responsável insiste com a necessidade alertar as pessoas para recorrerem primeiro ao mé- dico de família e consulta aberta ou para contactarem a linha Saúde 24. “Até para protecção dos próprios não devem vir ao hospital”, reforça.
“A verdade é que as pessoas fazem uma avaliação enviesada daquilo que é a sua situação clínica e acabam por se deslocar ao nosso serviço de urgência. Seja por falta de alguma literacia em saúde ou de respostas, esta é uma porta aberta a que todos recorrem, o que faz com que tenhamos uma percentagem superior a 40% de doentes não urgentes ou pouco urgentes”, realça.
As falsas urgências têm contribuído para a sobrecarga dos serviços hospitalares. O uso recorrente de doentes não agudos leva a que Portugal tenha “mais de quatro milhões de urgências hospitalares todos os anos”.
Risco de erro médico
“Uma urgência hospitalar deve estar reservada para situações graves, que implicam um nível de resposta diferenciada. O que acontece é que 70% dos doentes vêm sem estarem referenciados. E mesmo aqueles que vêm através do CODU [Centro de Orientação dos Doentes Urgentes], 7,5% são situações não urgentes ou pouco urgentes. Isto mostra a banalização do uso das urgências hospitalares”, critica Licínio Carvalho.
O administrador do CHL compreende os utentes: “as pessoas tendem a procurar uma porta que está sempre aberta. Mesmo que demore sabem que, mais cedo ou mais tarde, vão ser atendidas e vistas por um médico. Sabem que terão acesso a uma consulta e até a meios complementares de diagnóstico, o que lhes dá uma sensação de segurança e satisfação.”
A sobrecarga das equipas e o cansaço a que ficam sujeitas pelo número elevado de atendimentos, que pode chegar aos 600 por dia, “potencia o risco de erro médico”. “Não é uma inevitabilidade, mas há um risco potencial de isso acontecer, como sucede com qualquer profissional que esteja sujeito a uma pressão intensa”, diz o responsável, sublinhando, contudo, que os profissionais de saúde procuram “fazer o seu trabalho de acordo com as boas práticas”.
O CHL passou a ser referência para os cidadãos do concelho de Ourém. Para o administrador do hospital, o principal problema que esta ligação trouxe “não foi tanto o número de utentes, mas a sua característica”.
Segundo Licínio Carvalho, os utilizadores da urgência de Leiria são “mais idosos, com mais doenças crónicas, descompensados, com mais situações que exigem internamento e que estão institucionalizados”.
“Não importa apenas o número de atendimentos, mas, sobremaneira, a diferenciação e a severidade das patologias dos doentes que nos procuram e, é verdade, que temos sentido, nos últimos anos, uma alteração sensível do estado de saúde dos utentes que vêm à nossa urgência. Este tipo de utente obrigou a uma maior exigência nas nossas respostas e capacidade de organização. Isso é sensível em hospitais como o CHL, que serve uma zona populacional bastante idosa, na parte interior da região, e institucionalizada, como Ourém”, esclarece.
O envelhecimento da população vai aumentar o risco de sobrelotação das urgências. “O maior peso de população com doenças crónicas que exigem vigilância e contactos mais frequentes com unidades de saúde vai agravar-se. Isso coloca-nos grandes desafios na organização dos serviços hospitalares.
Ana Barros, coordenadora da USF Cidade do Lis, em Leiria, aumentou em duas horas o tempo disponível dos médicos para darem resposta aos casos de gripe e, sobretudo, patologias respiratórias. “Temos consultas abertas e de intersubstituição, que garantem o atendimento de situações agudas”, assegura a médica.
A coordenadora salienta que tem tentado educar os seus utentes, pedindo-lhes que procurem primeiro os cuidados de saúde primários. “A falta de resposta até poderia ser um argumento válido há uns anos. Neste momento, é residual a falta de médicos de família. As pessoas têm de ser reeducadas e terem consciência que quando vão ao hospital estão a ocupar uma vaga erradamente e a retirar meios a quem tem uma doença aguda”, alerta Ana Barros.
A médica defende que se as urgências fossem destinadas apenas a casos verdadeiramente graves, não estariam entupidas. “Temos de salvaguardar o Serviço Nacional de Saúde e utilizá-lo devidamente. Se não conseguirmos dar resposta na USF, nós próprios encaminhamos as pessoas.”
O caos nas urgências acaba por “esgotar os profissionais de saúde”, que “estão no limite e entram em burnout”. “Os recursos são limitados. O hospital tem de arranjar uma forma de barrar essas pessoas. Até para garantir uma urgência com humanização e com os melhores serviços ao cidadão, que realmente necessita.”
41%
dos utentes que foram atendidos na urgência do Hospital de Santo André não eram doentes agudos, pelo que deveriam ter sido atendidos nos cuidados de saúde primários
500
pessoas é a média diária que o serviço de urgências do hospital de Leiria atende. Destas, 200 utentes não deveriam ter passado pelo hospital
7,5%
dos doentes referenciados através do CODU – Centro de Orientação dos Doentes Urgentes, que são encaminhados de ambulância para o hospital situações não urgentes ou pouco urgentes. 70% chega às urgências sem qualquer referenciação
100
utentes é a média diária de atendimentos, em cada uma das urgências dos hospitais de Alcobaça e de Pombal