“Um dia encontrei a Mafalda Milhões (ilustradora) num avião, em Bolonha. E ela falou-me na possibilidade de criarem livrarias em Óbidos, e que tinha de ser uma coisa para a Ler Devagar. Porque havia um projecto de regeneração urbana, vários edifícios em ruínas que podiam ser convertidos em espaços de criatividade”.
José Pinho conta esta história (datada de 2012) ao JORNAL DE LEIRIA no final do documentário A propósito de Buñuel, na Casa José Saramago, outro troféu conquistado pela vila. O livreiro é, afinal, um dos mentores da Óbidos Vila Literária, que actualmente divide a liderança da associação cultural com Telmo Faria, ex-presidente da Câmara.
Desse tempo em que tudo era génese recorda como alguns editores livreiros já tinham a ideia de fazer uma cidade do livro em Portugal, e como calhou tão bem essa vontade de Óbidos. “Propusemos 11 livrarias, o que era sempre o maior dos riscos, numa terra que apesar de ter muitos visitantes tem apenas 100 habitantes”, lembra José Pinho.
Na verdade, quem conhece Óbidos sabe que é assim. E que quando o sol se põe quase se assemelha uma vila-fantasma. Mas haveria de correr bem. Do projecto inicial da vila literária faziam parte cinco festivais ao longo do ano, ainda nem todos lançados.
Além do Folio, conta-se a realização do Latitudes – encontro de literatura e viajantes, que aconteceu em Abril passado. “E esperamos lançar um outro para o ano, talvez dedicado à poesia”, revela o criador, que almeja um dia poder desfrutar do Folio como visitante, ao invés de estar mergulhado em trabalho nos dias do Folio.
O sucesso conquistou-se logo a partir do primeiro ano, graças à programação de excelência. Ao mesmo tempo, a vila e a região foram respondendo à sua maneira à criação da marca, com destaque para o investimento privado.
Telmo Faria é um dos responsáveis por essa parceria. [LER_MAIS] O ex-autarca acredita que só essa continuidade de projectos (conseguida com o sucessor, Humberto Marques) “pode garantir o futuro”, e por isso faz a sua parte, na hotelaria e restauração. Em 2015, um ano depois do primeiro Folio, criou o The Literary Man, um hotel literário, que mais tarde viria a ganhar uma ramificação: The History Man, o restaurante/casa de pasto que conta a história “a partir daquilo que os homens cozinham e comem”. Os livros forram as paredes, estão ali à mercê dos hóspedes.
“A criação de Óbidos como vila literária fez com que tivéssemos uma vida nova”, sublinha Telmo Faria, certo de que a estratégia traçada ao tempo em que liderava a câmara – já ao lado do actual presidente – permitiu construir uma marca que se destaca no território, em Portugal e no estrangeiro. É verdade que não foi, de todo, um caminho fácil. Mas há um soluto que traz consigo há anos, uma espécie de mantra: “o país por vezes precisa que sejamos teimosos e resilientes”.
Porém, tem dúvidas de que o Governo já tenha percebido a dimensão deste fenómeno. “Acho que merecemos mais. Alguns organismos estão a ser ingratos”, afirma. Entretanto, este ano a organização já está a fazer uma reflexão sobre as dificuldades, porque nem tudo foram rosas. Ou melhor, há os espinhos, a dificuldade de ligação ao mundo local. E como é preciso garantir (esse) futuro, Telmo Faria deixa claro: “não queremos que o Folio se transforme numa grande cápsula que asfixia a vida local”.
Por isso é no projecto de continuidade que a organização já está a trabalhar, nomeadamente através da criação do Museu da Língua (ver peça na página 5).
20 mil livros para o hotel
Esta semana a Fundação Calouste Gulbenkian entregou no hotel literário uma boa parte dos 20 mil livros que fazem parte de uma doação. Telmo faria confirmou ao JORNAL DE LEIRIA essa iniciativa, que entende como “o reconhecimento por um projecto que a Fundação entende como de utilidade pública e social”.
De resto, o empresário acredita que ao criar postos de trabalho nessa área e abrir as portas à cultura, também através da iniciativa privada, é um mérito entendido pelos doadores.
O Folio tem-se revelado também uma oportunidade para ilustradores, cineastas, músicos ou até artesãos. No mercado ilustrado encontrámos Zélia Évora, a artesã de Caldas da Rainha, criadora do grupo de tricot Gang da Malha, ela própria autora dos livros Terapia do Tricot e Re-Use.
“Gosto muito do Folio porque tenho oportunidade de conhecer mais de perto o trabalho de alguns autores e especialmente ilustradores que admiro. Há oportunidade de assistir a conversas, e há um certo espírito no ar, que me faz sempre sair de lá inspirada com novas ideias”.
Zélia participa habitualmente no mercado ilustrado, para onde tenta levar “artigos mais ligados à ilustração, que faço com tecido”. Nesses dias é difícil assistir aos momentos interessantes do Folio, porque não pode deixar a banca, mas salvase tudo o resto.
“Sabe-me bem conviver com estes outros artistas, numa espécie de férias do dia-a- -dia, onde me sinto honrada pela boa companhia”.
Destaques dos últimos dias
Quinta-feira, 4:Mauro Munhoz (Flip), Manuela Ribeiro (Correntes d’Escritas), Afonso Borges (Fliaraxá), Julio Silveira (Ler – Rio Janeiro), Pedro Sobral (FIC – Cascais), Ana Miranda (Arte Institute), João Morales (Livros a Oeste), Gisele Corrêa Ferreira (Flipoços), Ana Filomena Amaral (FLII – Lousã) falam sobre a importância das feiras e dos festivais na divulgação dos autores e das suas obras. É às 21 horas na Casa da Música.
Sexta-feira, 5: Conversa entre Marcelo Moutinho e Socorro Acioli, na Casa José Saramago, às 11:30 horas.
Mais tarde, no mesmo local, Luís Carmelo, João Barreiros e Filipe Homem Fonseca falam sobre realidade aumentada e plataformas de realidade virtual (depois das 15 horas) e Alice Vieira e Francisco José Viegas Saramago debatem os 20 anos da atribuição do Prémio Nobel a José Saramago (pelas 16 horas).
Na Casa Tinta-da-China, às 18 horas, lançamento do livro O Pai da Menina Morta, de Tiago Ferro, com apresentação de Ricardo Araújo Pereira. Pelas 19:30 horas, Alan Hollinghurst, Cynan Jones e Isabel Lucas em tertúlia na Casa da Música: O escritor escreve sempre o mesmo livro? Pelas 22 horas, concerto de Samuel Úria com Manuela Azevedo e Manel Cruz no espaço Inatel.
Sábado, 6: às 12 horas, Jami Attenberg, Margarida Rebelo Pinto e Cristina Carvalho sobre orgulho e preconceito no feminino, na Livraria da Adega.
Às 18 horas, lançamento do livro Retratos 1970 – 2018, de Alfredo Cunha com Ana Sousa Dias, na Casa Tinta-da- China. Pelas 19 horas, na Livraria da Adega, Carlos Magno e Ferreira Fernandes debatem as fake news na era da pós-verdade. Às 22 horas, no Espaço Inatel, há concerto de Mundo Cão, com Adolfo Luxúria Canibal como convidado.
Domingo, 7: Ana Saragoça, Ana Margarida de Carvalho, Eric Briys e José Manuel Anta, com moderação de João Nazário, director do JORNAL DE LEIRIA; sobre o futuro da leitura em papel, na Igreja da Misericórdia, às 11:30 horas. Ao final da tarde, depois das 18:30 horas, homenagem a Germano de Almeida (Prémio Camões 2018), na Casa da Música, durante uma tertúlia com José Luiz Tavares e Filinto Elísio.
O concerto de encerramento do Folio 2018 está agendado paras 19:30 horas no Espaço Inatel, com a Lisbon Poetry Orchestra e o Quarteto Naked Lunch.