"Este é um sítio que ainda tem muito para contar. Há muita história escondida, sobretudo nesta superfície de ocupação datada de há 27 mil anos que ainda não foi toda escavada. Consideramos que este pode ser um sítio chave para compreender a transição ou [detectar] as primeiras comunidades anatomicamente modernas do homem.”
As declarações são de Ana Cristina Araújo, arqueóloga do Laboratório de Arqueociências da Direcção Geral do Património Cultural (DGPC), que está já no terreno a preparar o início das escavações.
Segundo esta investigadora, neste local foi identificada a data de há 29 mil anos, pelo que os especialistas acreditam que poderá verificar-se a "transição entre o dito homem de Neandertal e os primeiros Humanos modernos".
Se esta transição for encontrada ajudará a "compreender como se processou essa mudança entre dois ‘homos' distintos no território nacional", reforça Ana Cristina Araújo.
Vinte anos depois da descoberta do Menino do Lapedo na zona do Abrigo do Lagar Velho, freguesia de Santa Eufémia, no concelho de Leiria, uma equipa internacional de investigadores de diferentes áreas vai iniciar uma nova campanha arqueológica.
Os trabalhos de campo, que se iniciam na próxima semana e que irão decorrer até dia 22 de Agosto, envolvem "dez a 12" investigadores portugueses e espanhóis, num projecto do qual faz parte o arqueólogo João Zilhão, que liderou as escavações há precisamente duas décadas.
Nos trabalhos de campo anteriores "foram datados muitos materiais que foram encontrados nesta reentrância [onde foi localizado o Menino do Lapedo]", recorda Ana Maria Costa, geoarqueóloga do Laboratório de Arqueociências da DGPC, ao referir que as informações actuais sobre o local especificam que "ficaram preservados neste pequeno abrigo restos da ocupação entre os 26 mil e os 24 mil anos".
Ana Cristina Araújo acrescenta: “temos o rio do lado esquerdo e o abrigo do lado direito. Claro que isto já sofreu alterações muito grandes ao longo dos tempos, mas este vale ainda guarda muito da sua originalidade”.
E é no solo, junto ao abrigo onde foi encontrado o Menino do Lapedo, que vai começar a ser retirada a areia e se vão iniciar as escavações, “num processo muito minucioso”.
“Esta é uma superfície que foi ocupada há 27 mil anos e o objectivo da escavação deste ano é tentar compreender esta superfície, se ela tem continuidade e até onde vai”, reforça Ana Maria Costa.
Nos trabalhos anteriores, apesar de só se terem feito escavações à superfície, “foram descobertas duas lareiras, muito bem preservadas e que datam de há 27 mil anos”, constatam, exibindo in loco os resíduos de carvão, assim como ossos e pedras queimadas por acção do fogo.
"Temos a fauna, constando-se muitos dentes de cavalo e de veado. Não sabemos muito bem como seria a superfície na altura, mas temos peças da fauna que estão em conexão. Há dentes que pertencem à mesma maxila e que estão uns ao lado dos outros. Portanto, nunca poderiam ter sido transportados", revela Ana Maria Costa.
Segundo Ana Cristina Araújo, a ocupação terá sido “do tipo quase residencial” e “tinha de ser muito próxima do abrigo”.
“Temos aqui quase dez mil anos de história [ocupação de há 24 mil, 29 mil e 34 mil anos]. Não sabemos o que o tempo levou durante todo este período. Podemos ver a pala do abrigo e imaginar que este era um sítio protector e que as comunidades humanas vinham regularmente para aqui. Quer João Zilhão quer Francisco Almeida consideram que que isto deveria ser, por altura dos 27 mil anos, uma zona de tratamento de carcaças de animais abatidos nas proximidades”, explica a arqueóloga.
Ana Cristina Araújo recorda que foi João Zilhão que iniciou as escavações, trabalhos que foram prosseguidos por Francisco Almeida, que estará em Leiria, vindo da Austrália.
“Temos esta superfície de há 27 mil anos e a zona do famoso enterramento infantil do Menino do Lapedo, que data de 29 mil anos. Há uma diferença entre 27 mil e 29 mil anos e vê-se que a parede calcária do abrigo mete para dentro. É precisamente nesta concavidade que foi depositada a criança de quatro anos.”
Os trabalhos de campo vão decorrer com recurso a todas as metodologias. “Os sedimentos vão ser lavados aqui. Temos um laboratório de campo, onde ao final da tarde vamos trabalhar os materiais que foram exumados, etiquetar e fotografar.”
Serão ainda realizados desenhos, com recurso a uma coordenação tridimensional de todos os objectos para se perceber o local exacto de [LER_MAIS] onde foram retirados. Assim, será possível “reconstituir em laboratório”, o que é fundamental, para chegar aos comportamentos que tiveram lugar no passado”.
As especialistas referem que este projecto começou a ser preparado há três anos e que reúne vários apoios, nomeadamente da Câmara Municipal e do Museu de Leiria, do Laboratório de Arqueociências, da DGPC e das instituições das quais fazem parte todos os investigadores que integram o grupo.
Em Dezembro assinalam-se 20 anos da descoberta do Menino do Lapedo, cuja data será comemorada com um ciclo de conferências internacionais. “A Câmara convidou seis especialistas de distintas áreas do saber, que vão mostrar qual o contributo deste achado na sua área de investigação. Na altura, esta descoberta foi um grande desafio para a ciência e queremos verificar qual o resultado actual e se há respostas para as várias perguntas levantadas.”
“Ainda há tanto para conhecer neste vale. Só investigamos esta pequena área. Há vários abrigos nesta zona e ainda muita história para contar”, remata Ana Maria Costa.
Menino do Lapedo descoberto em Dezembro de 1998
Corria o ano de 1998 quando uma sucessão de felizes acasos pôs a descoberto a primeira sepultura do Paleolítico Superior da Península Ibérica. O primeiro acaso aconteceu em 1994, quando a associação ambientalista Oikos conseguiu travar as terraplanagens que o proprietário de um terreno estava a fazer a poucos metros do local onde, quatro anos mais tarde, seria descoberto o Menino do Lapedo.
O segundo acaso desta história teve Pedro Ferreira como protagonista. Estávamos em 1998 e este técnico da Câmara de Leiria era então um jovem estudante, finalista do curso de Património Cultural da Universidade de Évora, à procura de um tema interessante para investigar, que encontraria no Vale do Lapedo, concelho de Leiria.
Numa das suas incursões ao local, encontrou no tecto de um abrigo alguns desenhos que lhe chamaram a atenção. Mostrou as fotografias a um professor da universidade, que os desvalorizou. Procurou, depois, um grupo de arqueólogo e quis o destino que, nesse dia, João Zilhão, então presidente do Instituto Português de Arqueologia, estivesse com eles.
A primeira expedição da equipa de Zilhão ao Abrigo do Lagar Velho teve lugar em Novembro desse ano, com os investigadores a descobrirem a presença de ossos que os exames confirmariam pertencer a uma criança com quatro a cinco anos, sepultada no local há cerca de 25 mil anos.
Mas o que mais entusiasmou a comunidade científica e reforçou a importância do achado, considerado uma das mais importantes descobertas arqueológicas mundiais do século XX, foram as características anatómicas do menino, que levaram os cientistas a elaborar uma teoria sobre o possível cruzamento das duas espécies de humanos modernos: sapiens e neandertal.
Uma teoria que contraria a ideia vigente até à descoberta do enterramento do Lapedo, segundo a qual aquelas duas espécies de humanos modernos jamais se haviam cruzado ou relacionado.
O assunto ainda hoje não é consensual. Entre os defensores da teoria da miscigenação está João Zilhão que, juntamente como o americano Erik Trinkanaus, dirigiu as equipas que estudaram o Menino do Lapedo.
“É o fóssil em que, pela primeira vez, foi possível documentar de forma paleontologicamente inequívoca que as primeiras populações 'modernas' do continente europeu mantinham traços herdados dos neandertais e que, portanto, à época do contacto na Europa, há cerca de 40.000 anos, modernos e neandertais se tinham entrecruzado”, referiu João Zilhão em 2015 ao Jornal de Leiria.
Encontro com o passado no dia 11
O Município de Leiria e o Laboratório de Arqueociências da Direcção Geral do Património Cultural promovem, dia 11 de Agosto, um Dia aberto no Abrigo do Lagar Velho, no Lapedo, com o tema Encontro com o Passado.
Durante milhares de anos, o Abrigo do Lagar Velho, no Vale do Lapedo, foi procurado por grupos humanos que viviam da caça e da recolecção de alimentos selvagens para se abrigarem e tratarem as carcaças dos animais abatidos nas proximidades.
O fabrico de utensílios em pedra facilitava as tarefas de corte, raspagem e perfuração dos produtos resultantes desta actividade.
O fogo, sempre presente, era um elemento fundamental, garantindo aquecimento e protecção aos grupos paleolíticos. O rio facilitava o desenvolvimento das actividades do quotidiano.
Este encontro com o passado será contado no dia aberto, cujas inscrições, gratuitas, podem ser feitas através do e-mail umdianolagarvelho@gmail.com.