O bater do martelo na pedra já lhe está entranhado no corpo. Manuel Calvário sabe de cor o jeito que é preciso dar para, em poucos segundos, fazer o cubo que, somado a tantos outros, irá formar o rendilhado de calçada que dá beleza às ruas das cidades e vilas de Portugal e que está espalhada um pouco por todo o mundo, em espaços públicos, casas ou palácios.
Manuel leva já quase 57 anos dedicados à produção de pedra de calçada, nomeadamente da preta, no único local do mundo onde esta é extraída, em Alqueidão da Serra, no concelho de Porto de Mós. Ao longo dos anos, assistiu a muitos “altos e baixos” no sector. Da “loucura” que foi a construção da Expo, que “escoava tudo o que houvesse”, à crise do final da primeira década do século XXI, até ao momento actual em que sector está de novo em alta.
“Mais fizesse, mais vendia”, assume Aníbal Vieira, proprietário da Calcipredios, empresa de Alqueidão da Serra que, à semelhança de “todo o sector”, se debate com uma “enorme” falta de mão-de-obra.
A situação é, de tal forma grave, que Sérgio Saragoça, proprietário de várias explorações em Alqueidão da Serra e no Planalto de Santo António, onde existe um outro núcleo importante de pedreiras de calçada, antevê que, “dentro de 15 a 20 anos não vai haver matéria-prima”.
O alerta surge num momento em que está em curso o processo que pretende elevar a calçada portuguesa a Património Imaterial da Humanidade da UNESCO. Um primeiro passo foi dado em Março, com a apresentação da candidatura da arte e saber-fazer da calçada ao inventário nacional do património cultural imaterial, com o objectivo de promover e valorizar a calçada e os calceteiros e de salvaguardar um saber que se encontra “em vias de extinção”.
“De que vale termos mais calceteiros, se não tivermos matéria-prima?”, questiona Sérgio Saragoça, que chama a atenção para os problemas que existem na origem do processo, ou seja, na extracção e produção da calçada.
O empresário frisa que, neste momento, “entre 80 a 90%” dos trabalhadores do sector têm “mais de 50 anos” [LER_MAIS]e alguns, como Manuel Calvário, estão já reformados. Alberto Vieira conta que, na última crise, houve trabalhadores que tiveram de emigrar e que já não regressaram.
Foi o caso de Francisco Santos, que trabalhava na Calcipredios e que, durante vários anos, presidiu à Associação de Exploradores de Calçada à Portuguesa, organização que chegou a ter perto de 230 associados e que agora está quase inactiva.
“[Francisco Santos] Era também um excelente ferreiro. Fazia os martelos para trabalharmos a pedra, com uma boa têmpera. Não voltou e perdeu-se esse saber”, nota Aníbal Vieira, cuja empresa tem quatro funcionários, todos entre os 54 e os 62 anos.
À espera de “um milagre”
“A procura agora é muita, porque a construção civil está a mexer bem, mas não há pessoal. Os novos não querem vir e os mais velhos vão-se reformando sem passar o saber”, reforça Sérgio Saragoça, para quem “só um milagre” poderá inverter esta perda de trabalhadores.
A partir pedra desde os 13 anos, com um interregno de cerca de dez anos quando trabalhou na Câmara de Porto de Mós e esteve emigrado na Suíça, Ilídio Santos diz compreender quem “foge” do ofício. É, frisa, um trabalho “duro”, que “dá muitas dores no corpo”, executado ao sol e à chuva.
“Antes, ainda era pior. Tínhamos de carregar a calçada à mão, com forquilhas. Agora, já temos algumas máquinas que ajudam”, ressalva Manuel Vieira, de 63 anos, 50 dos quais a trabalhar na pedra.
Se é verdade que a maquinaria veio facilitar algumas fases do processo, como a movimentação dos grandes blocos de pedra, a parte essencial do trabalho – o partir sucessivo da rocha até chegar ao pequeno cubo de calçada – continua a ser manual.
“Não há máquinas que façam esta pedra. É um trabalho completamente manual. E, tudo o que é artesanal, está a ir à vida”, nota Sérgio Saragoça.
Célia Marques, vice-presidente executiva da Assimagra, associação que representa a indústria portuguesa dos recursos minerais, reconhece que um dos grandes problemas do sector é a escassez de mão-de-obra, que afecta não só a calçada, mas toda a área da extracção e transformação de pedra.
“A passagem de conhecimento de geração em geração não se está a fazer e a calçada sofre muito com isso. É um trabalho duro, que não gera atractividade”, reconhece.
A dirigente garante, no entanto, que a associação tem “tentado” inverter essa tendência, com “a criação de cursos técnicos” e acções que dêem a conhecer o sector com uma imagem “mais apelativa e atractiva”.
Nesse sentido, a candidatura da calçada a património imaterial será uma ajuda “preciosa”, porque irá “impulsionar uma nova forma de abordar a pedra” e, com a sua valorização, tornar o sector “mais apelativo”.
Essa é também a convicção de Jorge Vala, presidente da Câmara de Porto de Mós, autarquia que integra a Associação da Calçada Portuguesa. “O trabalho de valorização e reconhecimento do saber-fazer da calçada irá também beneficiar a parte da extracção, grande parte da qual com origem em Porto de Mós”.
Entre a beleza e o desconforto
Se por um lado, a calçada portuguesa “faz parte da identidade” de cidades como Lisboa, da cultura nacional e da “nossa relação com o mundo”, com sublinhou Fernando Medina,presidente da Câmara da capital do País na apresentação da candidatura a património imaterial, por outro, está muitas vezes associada a um certo desconforto pela sua irregularidade. E, por isso mesmo, tem vindo a ser substituída por outros tipos de pavimentos.
“É necessário que a calçada seja compatível com a boa mobilidade e com a exigência das pessoas, porque são estas que a usam todos os dias”, defende Jorge Vala, reconhecendo que nem todos os locais são indicados para este tipo de material, por “mais beleza e estética que tenha”.
A solução, diz, está em encontrar “o equilíbrio”. “Se há passeios e praças onde a calçada pode brilhar, há ruas onde, pela sua inclinação, a solução não é adequada”. No caso de Porto de Mós, a Câmara continua “a privilegiar a calçada” na execução de passeios.
Em declarações ao jornal Público, António Prôa, secretário-geral da Associação de Calçada Portuguesa, relaciona as críticas relativas ao desconforto do pavimento com a falta de profissionais que apliquem bem o empedrado e façam uma boa manutenção da calçada. E dá o exemplo da Praça do Império, em Lisboa, com calçada colocada em 1940 que “é tão confortável como qualquer outro pavimento”, porque “foi bem aplicada e tem sido mantida”.
“O conforto ou desconforto da calçada tem muito que ver com a sua aplicação, que exige know how”, reforça Célia Marques, chamando também a atenção para a importância de um “maior estudo e cuidado” na escolha dos locais onde esta é executada.
A certificação da aplicação é, aliás, uma das áreas que está a ser trabalhada no âmbito da candidatura a património imaterial. Há, inclusive, uma parceria com o Instituto Superior Técnico que visa o estudo de soluções que contrariem a falta de conforto e segurança na calçada.
“Se há coisa que devemos evitar é que, por razões de aplicação e manutenção, se ponha em risco um património que pode ser tão diferenciador e que é um símbolo de Lisboa e de Portugal em todo o mundo”, afirma António Prôa, ao Público.
Apesar de “todas as dificuldades”, a vice-presidente da Assimagra olha para o futuro do sector com optimismo: “A calçada portuguesa faz parte do nosso património cultural e da nossa identidade. Nunca vai deixar de estar na moda.”