Conhece a campanha de promoção territorial que pegou na ideia difundida na rede social Reddit que diz que “Leiria não existe”, aplicando uma espécie de psicologia inversa? Leiria existe para a actriz Jani Zhao?
Os sítios existem como nós os pensamos. Leiria, para mim, é e sempre será, um sítio que representa a ideia de casa, que representa crescimento, que representa aventura, que representa uma certa rebeldia. Passei várias fases da minha vida em Leiria, desde bebé, que não sabia falar e andar, até à infância e as possibilidades de brincadeira e descoberta da identidade, depois a pré-adolescência, a fase de alguma rebeldia e aventura. Apesar de não viver em Leiria há muitos anos, vivi intensamente os tempos que lá passei, porque também ia nas férias escolares. As de Verão, que eram de três meses, até ao Natal, depois o Carnaval e a Páscoa. Eram temporadas, não era uma coisa de fim-de-semana e depois voltar a Lisboa. E eu e o meu irmão íamos sozinhos, porque a minha mãe e o meu pai ficavam a trabalhar, por isso, havia uma liberdade imensa.
Costuma regressar?
Regressei, mas não reconheço a Leiria que há em mim. Leiria mudou muito e ainda bem. Sou a favor da evolução e de que as coisas mudem e se transformem. Mas, é sempre uma visita muito nostálgica. Ultimamente, não têm sido pelas melhores razões, porque houve familiares que faleceram e tenho de ir e ajudar a tratar de tudo, porque é o mínimo que posso fazer à família que também nos acolheu, que nos ajudou, que nos educou… Ainda assim, sempre que lá vou é sempre motivo de um grande reencontro e alguma angústia.
Manter a sociedade ignorante, dá muito jeito a quem está no topo
Quando fecha os olhos e pensa em Leiria, qual é a primeira imagem que aparece na mente?
Visualizo a Gomes Freire, que era a rua da casa da nossa avó, onde também vivia a família que nos acolheu, e o Centro Comercial D. Dinis. Eu o meu irmão crescemos naquele centro comercial, com aquelas pessoas, naquelas escadas rolantes, naquele café, naquela papelaria, na rádio 94 FM. Não havia muitos asiáticos em Leiria na época. Lembrou-me que havia uma família chinesa, com quem nos demos durante uns tempos, portanto, não éramos os únicos. Quando fui morar para Cascais, já senti uma maior diferença… mais sentida. É engraçado, não é? Leiria, não existe, mas, para nós, existiu muito e há de sempre existir. Leiria sempre foi um lugar muito seguro, muito confortável, muito acolhedor, também pela família que lá tínhamos. Hoje, a cidade está diferente, eu sinto que não a reconheço, mas não quer dizer que seja mau. Estão vivos na memória os sítios por onde andava antes, tão queridos, carregados de vivências, de cheiros, é mesmo um sítio muito especial, porque nenhum canto daquela cidade está isento de alguma história, para mim. A casa da minha avó, entretanto, foi vendida há uns anos e nós não tivemos a possibilidade de nos despedirmos dela. Tempos depois, numa [LER_MAIS]ida a Leiria, passámos por lá e vimos que estava em obras. Tentávamos perceber se havia a possibilidade de entrar e, entretanto, apareceu um senhor que estava dentro da casa. Perguntámos se podíamos entrar. Éramos umas dez pessoas, e ele ficou desconfiado, mas deixou-nos passar, depois de assegurarmos que nos responsabilizámos. Foi mesmo, mesmo muito especial. Foi um fecho de um ciclo na minha vida. Fui visitar a casa e despedir-me dela.
Como foi para uma filha de uma família asiática crescer em Leiria?
A minha mãe e o meu pai viveram uns tempos em Leiria, tiveram o meu irmão, tiveram-me e depois mudámos para Cascais, passado pouco tempo. Por isso, a memória que tenho de Leiria não está associada à minha mãe e ao meu pai, mas, absolutamente à família da ama que cuidava do meu irmão e de mim, que se tornou a nossa família. A eles devo muito, porque o meu lado português, vem, de facto, deles. São uma família disfuncional, como todas as famílias, problemática, com todas as questões relacionadas com a desigualdade social, com a falta de apoios e com a falta de estrutura. É uma família que me tem ensinado muito. Em Cascais eu e o meu irmão andámos nos Salesianos no Estoril, numa qualidade completamente diferente. É um colégio privado, católico… Foi um acto muito corajoso da minha mãe e do meu pai, que queriam que nos inseríssemos ao máximo e nos sentíssemos integrados na sociedade, por isso, fizeram uma coisa que não é contra, mas não tem nada a ver com a religião, com a tradição e a cultura deles. A minha família de Leiria tinha os seus traumas e os seus fantasmas, e, sem saberem, ensinaram-me muitas coisas que levo para a vida e fazem parte de mim. Fomos baptizados na Sé, de Leiria, porque os meus pais tinham aquela ideia de que apesar de sermos imigrantes, apesar de sermos de fora, queriam que filhos fizessem parte. Não eram católicos e o padre abriu uma excepção. Hoje, sinto-me portuguesa. Os outros é que não me vêem com portuguesa. A partir do momento em que a sociedade portuguesa reconhecer e admitir que é racista, será um passo em frente, para haver uma mudança. Se esse reconhecimento, estamos a viver em ilusão e na falta de coragem e capacidade de reconhecer a questão. Eu própria, que tenho consciência deste tema e das questões políticas associadas, às vezes, também me deparo com algum preconceito e isso faz parte. Infelizmente, somos educados nessa questão de o outro, quando não se conhece e não se sabe de onde vem, ser motivo de desconfiança e de motivo de ataque. Não há problema em reconhecê-lo, a questão é que as pessoas pensam que podem ser inferiorizadas se o fizerem. Acredito que é exactamente o contrário. O momento quando reconhecemos e admitimos, é um motivo de orgulho, porque nos estamos a disponibilizar e estamos a pôr num lugar de fragilidade e de vulnerabilidade. Tudo tem a ver connosco, a partir do momento em que temos essa humildade, de perceber que há coisas em nós que não têm a ver com o outro, e que devem ser exploradas, analisadas, reflectidas e melhoradas.
Estamos muito próximos de sermos robôs
A não aceitação dos outros, está a aprofundar-se?
Sem dúvida. O crescimento da extrema-direita não tem trazido coisas boas. Está tudo um bocadinho bizarro, mas temos de ter noção de que está a acontecer, porque temos exemplos concretos, na Europa e no mundo inteiro, e não podemos baixar os braços. O populismo existe e vai sempre existir, mas não podemos sentir que não há nada a fazer, que a nossa opinião não vai contar, que não vai fazer diferença ou que o nosso voto é inútil. Os mais velhos dizem que os mais jovens não têm noção daquilo que teve de acontecer e das lutas que houve para chegarmos a este ponto de democracia, de livre-arbítrio, de liberdade de expressão. Foi há 50 anos… não é assim tanto tempo. Nós e os mais jovens não podemos ser preguiçosos e não podemos tomar as liberdades e direitos por garantidos, porque, a partir do momento em que isso acontece, é muito fácil tirarem-nos. Depois, vai ser muito mais difícil recuperá-los. Com o panorama actual, há uma incerteza em relação ao futuro, há medo, está tudo complicado, e perde-se a esperança e a fé.
Está a filmar em Santarém um novo filme?
É o Projecto Global, do Ivo M. Ferreira, produzido pela Som e a Fúria com a Tarântula, produtora de Luxemburgo. É um filme que se passa nos anos 80, uma época muito específica. Fala-se das questões políticas do que era viver nesses anos, pouco depois do 25 de Abril, mas com o medo de que o fascismo voltasse. Da consciência de que era preciso lutar pela liberdade, pela reforma agrária, pelo fim da desigualdade social. É um filme inspirado nas Forças Populares do 25 de Abril (FP25), mas não é biográfico, nem acerca da questão política. Tem a ver com as pessoas que fizeram parte dessa organização clandestina armada da extrema-esquerda. O olhar do Ivo, o realizador, é acerca da vulnerabilidade, da fragilidade, das contradições humanas, de quem eram estas pessoas e porque tomaram a decisão de entrar numa organização armada. Não é didáctico, nem panfletário e não é uma aula de história. O 25 de Abril e o que está nos manuais escolares é apenas um lado da história. Para evoluirmos enquanto sociedade, temos de ver as coisas de uma forma mais ampla, para também criarmos a nossa opinião. Manter a sociedade ignorante, dá muito jeito a quem está no topo, mas a arte serve para falar das questões difíceis e reflectimos e analisamos as coisas com outra perspectiva. É com a arte que podemos tocar na ferida e fazer com que haja outros pensamentos e capacidades de empatia e conexão. A ideia de não se dar valor à cultura, faz-me imensa confusão. Ela é aquilo que nos agarra e que faz parte da identidade de um povo, de uma sociedade e de uma nação. Com as redes sociais, as pessoas camuflam-se, mudam muito e é tudo superficial. Gostava imenso de fazer o teste de tirar, sem aviso prévio, a internet às pessoas durante seis meses, para ver o que acontecia. Depois, veria o que acontece no dia-a-dia. Hoje, há um automatismo, onde as pessoas, acordam, levam os filhos à escola, vão para o trabalho, regressam e repetem o mesmo no dia seguinte…. Estamos muito próximos de sermos robôs e a tecnologia, a internet fazem com que as pessoas sejam a ‘persona’ que criaram nas redes sociais, onde dizem e vomitam tudo, mas, frente a frente, não têm a mesma coragem. Há falta de seriedade. Vive-se com muito medo, porque há contas para pagar, filhos a quem dar o que comer, rendas cada vez mais insuportáveis, e uma inflação que não se percebe. A vida está muito difícil para todos. Só não está para os ricos. As pessoas não estão a ter capacidade de se expressarem e de se manifestarem e a memória é muito curta e isso traz coisas muito perigosas e demagógicas.
A internet faz com que as pessoas sejam a ‘persona’ que criaram nas redes sociais, onde dizem e vomitam tudo
Filmar um Aquaman ou a série Sul é a mesma coisa?
É a mesma coisa no sentido em que é trabalho e lido com o trabalho da mesma forma, seja o Aquaman ou uma peça de teatro com um orçamento muito reduzido, ou uma série portuguesa com um orçamento simpático e com uma visão, que, se calhar, ainda não se tem feito muito em Portugal, como é o Sul. É importante lidarmos com as coisas sem um fascínio que nos possa cegar e que nos possa atordoar e afectar o trabalho. O Aquaman surgiu de uma forma repentina. O processo foi muito rápido, e quando estava a perceber que havia grandes possibilidades de ficar com o papel, também estava a acontecer uma coisa a nível pessoal muito trágica. Idealizamos algumas coisas na vida e elas não acontecem como achávamos que poderiam acontecer. De facto, isto foi um grande murro no estômago, porque o encanto, a excitação que poderia haver, quando soube da grande notícia, foi doseada, porque a nível pessoal estava a passar por um momento difícil. Mas deu-me entusiasmo, muita alegria, mas também noção e consciência de que as coisas são só aquilo e não são mais do que aquilo. Por exemplo, o abrir de novas portas… O abrir portas é muito relativo. Trabalho há mais de 15 anos e já fiz algumas coisas que poderiam ter aberto portas, mas não abriram, e fiz outras que achava que não iam ter consequência e tiveram. Esta profissão é tão imprevisível que nunca temos certeza de nada, aqui em Portugal, pelo menos.
A nível internacional, onde gostaria de investir o seu talento?
O talento ajuda imenso, mas se não se trabalhar… A ideia de que o talento, per si, nos leva a algum lado é uma grande falácia. Olhamos à volta e vemos muitos exemplos. Se não se trabalhar arduamente, com disciplina, rigor, cuidado, respeito, e o facto de haver persistência, resiliência, força, pensamento político também, as coisas podem não avançar. Não só nesta profissão, enquanto pessoas e cidadãos temos o dever de termos noção de onde nos posicionamos, o que defendemos, o que queremos, porque é que lutamos e qual é o futuro que idealizamos. Gosto de trabalhar com gente boa, com pessoas que se identifiquem com a minha maneira de ver o mundo, de ver a vida, de ver os outros, e que me desafiem a sair da zona de conforto, apesar de precisarmos dela para nos sentirmos seguros. Com o Aquaman, tenho aproveitado o tempo de antena para falar de questões que entendo serem urgentes e pertinentes. Não há maneira de contestar aquilo que tenho alegado. O exemplo da ausência de representatividade na ficção portuguesa é um sinal absoluto de que o racismo é sistémico e estrutural. É chocante não se reconhecer isso. É tão descarado. Não tenho problemas em falar sobre a questão dos comentários e das observações racistas e xenófobas que tem havido nas entrevistas e nos artigos que têm saído acerca do Aquaman. Não fico revoltada, nem triste, nem zangada, fico preocupada, porque tenho um filho. Essas pessoas fazem parte da sociedade e, ao votarem, vão também fazer parte da decisão do nosso futuro. Isso é que me preocupa. Não podemos pensar que são pessoas ignorantes ou que não importam. Importam! Não posso encolher os ombros, pois isso é uma falta de responsabilidade, enquanto cidadã e mãe! Que exemplo estou a dar ao meu filho? Se alguém pensa assim, certamente, muitos outros pensarão igual. Temos de respeitar o outro tal como ele é, mas temos também de ver se ele está a interferir connosco, com os nossos e com o nosso futuro. Não é muito mais interessante haver evolução? Sermos um bocadinho melhores, juntos? De termos cuidado com o outro? De olharmos para o outro com delicadeza? Com admiração? Com respeito? Em termos humanos, estamos a regredir na coisa mais básica, a empatia. E o sentido crítico já não existe, porque se acredita em tudo o que está em redes sociais, que apenas reforçam os nossos preconceitos. Estas questões são muito assustadoras, mas não podemos deixar-nos comer pelo medo. Se não, vendemos a alma ao diabo e cruzamos os braços.
A aposta da RTP em séries e telefilmes, em vez de telenovelas, mudou alguma coisa no gosto do público português?
Sim, principalmente nos mais jovens, que estão sedentos de produções de qualidade, de produções portuguesas. Quando, volta e meia, aparece uma é sempre reconhecida e não passa ao lado dos portugueses. As novelas têm de facto uma importância muito grande nas massas, e é muito inquietante ver que as pessoas que estão nos lugares de decisão, não tomam atitudes em relação a isso. As novelas são um produto que, não diria artístico, mas, de entretenimento que perpetua muitas questões na sociedade. Em vez de ser construtivo, produtivo e útil na reconstrução da mentalidade de uma sociedade, perpetua e compactua com preconceitos que não são nada benéficos para a evolução da Humanidade.
Do pequeno ecrã para Hollywood
Jani Zhao nasceu em Leiria há 31 anos, cidade onde viveu com os pais – filha de pai norte-americano, de ascendência chinesa, e de mãe chinesa macaense -, estudou dança com a companhia de Olga Roriz e teatro na Escola Profissional de Teatro de Cascais, de Carlos Avilez.
Iniciou-se em “Floribella” e foi Sandra Chung numa temporada da série “Morangos com açúcar”, fez a telenovela “Jogo Duplo”, e encarnou Chung Li no filme “Cabaret Maxime”, de Bruno de Almeida.
Em 2019, foi Alice, na aclamadada série policial “Sul”, de Edgar Medina e Ivo M. Ferreira, em 2021 foi Júlia Andorinho na série “Capitães do Açúcar”, de Ricardo Leite.
Recentemente, interpretou, no cinema, a personagem Stingray, no segundo filme Aquaman, do universo DC Comics, ao lado de Jason Momoa, Nicole Kidman, Ben Affleck, entre outros.
Neste momento, trabalha na última produção de Ivo M. Ferreira, o Projecto Global.