Com vasta experiência em projectos de reabilitação de equipamentos e programação cultural, João Aidos já trabalhou em mais de uma dezena de concelhos e em espaços como o Convento de São Francisco em Coimbra, o Espaço Oficina em Guimarães, o Teatro Aveirense ou o Teatro José Lúcio da Silva, em Leiria. Gestor, programador, produtor, consultor e engenheiro projectista, fez também teatro e fundou a ACTA – Companhia de Teatro do Algarve e a Efémero – Companhia de Teatro de Aveiro. Antigo director-geral das Artes, dirige actualmente o Teatro Municipal de Ourém.
Para que serve um teatro municipal?
É um lugar, um espaço, com determinadas valências técnicas, que, por norma, funcionam para ter uma programação artística dentro das artes performativas, ou também visuais, para fruição cultural de uma comunidade, programação essa que deverá servir para me capacitar, para me dar outros olhares. Um espaço de encontro comigo próprio, de me dar outras ferramentas, sobretudo, olhares e interpretações de artistas que me dão a mim outros olhares, que eles têm, de interpretação, sobre vários temas, do amor, da morte, da vida, dos vários assuntos que compõem o nosso percurso. E é um espaço de excelência a nível da beleza, onde estes artistas interpretam momentos que são transcendentes. É um espaço também de questionamento, de inquietação, que me vai dar outro tipo de ferramentas, sobretudo outros olhares, que são importantes para a minha maneira de estar na comunidade e na sociedade.
E como é que se mede ou avalia o contributo para a população e o impacto social?
É sempre difícil medir de uma forma que às vezes as pessoas querem. Não dá para medir com fita métrica. A tolerância ou a criatividade ou a inovação, nós não conseguimos medir, mas, se somos cidadãos mais activos, se somos mais tolerantes, se somos mais criativos, de certeza que também se deve àquilo que foi o nosso caminho a nível do contacto com as artes performativas ou artes visuais. Há imensos ingredientes e o bolo pode ser melhor ou não consoante esses ingredientes. Isto são as vitaminas que nos fazem crescer e viver. E é isto que também transforma as comunidades. As comunidades vivem numa determinada geografia, com uma determinada cultura, uma determinada história, uma determinada memória, que é única, sempre, e este espaço serve também para esse espaço de liberdade de pensamento. É também um espaço de desenvolvimento da imaginação, que é algo que é mesmo muito importante. Também é um espaço para a contemplação. Nós precisamentos de espaços para contemplar numa sociedade de informação muito rápida, global. Cada vez a informação é maior, e, também, que informação é essa? Como é que eu filtro essa informação? Qual é a verdade dessa informação? Estes espaços culturais, estes espaços programáticos, eu entendo-os como um espaço de iberdade para cada cidadão poder estar consigo próprio.
Já trabalhou em mais de uma dezena de concelhos. Sempre sem interferências indesejáveis do poder político?
[Para] qualquer pessoa que tem esta possibilidade magnífica – e responsabilidade, também, estamos a decidir a programação de um determinado lugar, e os conteúdos – uma das bases de trabalho é fazer um mapeamento do território. Isto é como um grande puzzle constituído por uma série de peças que são todas diferentes, e ainda bem que são diferentes, mas depois é muito interessante: quando elas encaixam umas nas outras nós vemos a imagem do todo. E todos nós devemos fazer parte do processo. Quanto mais este teatro trabalha a mediação, a participação da comunidade, mais ele faz parte da comunidade e a comunidade sente que faz parte deste teatro. Também temos de perceber o que é o poder local. O poder local é organizado de uma maneira muito top down, piramidal, em que há uma pessoa que decide tudo, que é o presidente da câmara. E depois os seus vereadores, mas é muito concentrado no olhar de uma pessoa. E às vezes é também percebermos quais são as funções de uma autarquia, que tem várias. E estes equipamentos, que no fundo me fazem decidir se quero viver aqui ou quero viver em Leiria ou em Santarém ou noutro sítio qualquer. Viver, ser feliz, criar a minha família. Estes equipamentos são serviços que se prestam à comunidade. Nós trabalhamos numa área ainda mais delicada: trabalhamos na área da formação individual do cidadão, trabalhamos a área dos sonhos, de a pessoa poder sonhar e nunca mais esquecer aquele espectáculo de dança ou aquela música. Nós trabalhamos o colesterol da imaginação. Há uns que trabalham o colesterol físico, nós trabalhamos o colesterol de a pessoa reflectir, imaginar e de ser um cidadão melhor e mais feliz, que tenha uma outra capacidade crítica, com uma coisa que falha muito, que é referenciais. Tudo isto se resume no bem-estar. Quem define a política pública na área da cultura deve ser a autarquia. O vereador da cultura ou o presidente da câmara, com a pessoa que tem essa responsabilidade de definir a programação, decidir assim: “eu quero que o caminho seja muito por este lado”.
Em geral, diria que os autarcas hoje estão mais disponíveis para investir na cultura?
Hoje estão mais disponíveis. A cultura tem muita visibilidade e para eles isto é muito importante. É um meio de comunicar, de chegar às pessoas. A cultura é também tida como uma estratégia de comunicação com a comunidade.
Uma das características da programação que fazem aqui no teatro [de Ourém] é que são frequentes projectos que ligam artistas nacionais e artistas locais ou parcerias com a comunidade e mesmo com amadores.
Sim, sim, muitas. Isto está na génese da candidatura que fizemos inicialmente. O teatro inaugurou e fizemos logo uma candidatura à DGArtes [Direcção-Geral das Artes] e fomos apoiados na primeira leva do patamar mais alto. É muito dinheiro, além disso, ainda temos de investir a receita. E nós desde o início, e percebendo o território, conversando, obviamente, também com o executivo, olhando também para os equipamentos que existiam, achámos que tínhamos também de puxar pelo resto das outras áreas e dos outros equipamentos. E também que deveríamos co-produzir e co-criar e subir os degraus das estruturas culturais locais. Isso fez toda a diferença, aliás, desde a inauguração que é assim. Acima de tudo, dar protagonismo a estas estruturas locais.
Pode concluir-se que a rede de teatros e cineteatros diminuiu as assimetrias regionais?
Claramente. As directrizes, quem é que as definiu? Foi toda a gente. A própria DGArtes, mas o sector também. A DGArtes auscultou toda a gente, os artistas, os programadores, toda a gente, para definir quais é que deveriam ser as regras de financiamento da RTCP [Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses]. E isso é muito positivo. Significa que ninguém se pode queixar. Fomos nós todos que definimos.
Há mais público nas salas?
Isto não é linear. Temos aqui fases de novamente não ter público. O pós-Covid foi terrível, o voltar às salas foi muito difícil. Tem havido ciclos de falta de público e com mais público.
Consegue explicar as causas?
Há uma fase em que acho que as pessoas tentaram reencontrar-se com elas próprias e que passa também por todas as transformações digitais. Nós estamos neste momento sempre em contacto com qualquer coisa de imediato e o sentar numa sala sem nada… Temos falta de práticas e de hábitos culturais, muito grande, porque nunca se investiu, porque também não havia equipamentos. Tudo isto é uma pescadinha de rabo na boca: não havendo equipamentos, as pessoas não tinham acesso. Os festivais fizeram um outro trabalho e esta questão do ar livre também criou uma relação de estarmos todos a comungar. É um bocadinho como o futebol. No futebol nós vemo-nos todos, no teatro não nos vemos, a luz apaga e tudo é concentrado ali, é diferente. Por isso, as feiras medievais têm grande sucesso. A questão da comida é muito importante, faz parte da nossa cultura. Temos dificuldade em parar, em encontrarmo-nos com nós próprios, às vezes fugimos disso. É um problema nós entrarmos nas salas, olharmos para quem cá está e é 40 [anos] para cima. No entanto, se fizermos um espectáculo de stand-up, está cheio, com público mais jovem. Eles comunicam digitalmente. E muita da geração de alguns programadores ainda é do Facebook e não do Whatsapp. Temos de mudar mesmo esses processos de comunicação. Comunicar digitalmente é obrigatório, é muito importante.
Voltando ao investimento que vários concelhos estão a fazer na área da cultura, e em equipamentos. Há o risco de a concorrência se tornar canibalização, com os mesmos artistas e espectáculos em cidades próximas?
É um grave problema, porque não há escala, as cidades são muito pequenas. Isto obriga-nos – estamos a começar a fazer isso, mas não se está a fazer ainda como deve ser – a olharmos o que cada um está a fazer, falarmos. Não há escala, significa que isto obriga as pessoas a trabalharem o seu território, a que façam trabalho de co-produção, de co-criação, de mapeamento do território, perceber que artistas emergentes, apoiá-los.
Nos aspectos ligados à participação, diversidade, acessibilidade, há um caminho ainda muito grande para fazer?
Mesmo muito. Porque é que isso é difícil? Porque tenho de ter recursos humanos para o fazer. Nós temos duas pessoas para a mediação e já tivemos três. Há teatros com responsabilidade que nem uma pessoa têm para a mediação. Devemos apostar para as pessoas terem acesso e perceberem que todos nós temos potencialmente características, competências, que nunca desenvolvemos. Estamos a trabalhar agora com pessoas de idade maior. Onde a gente faz a diferença é no processo. O processo é que muda tudo. Grande parte dos técnicos também são artistas. Muda tudo. Temos uma equipa altamente profissional. Trabalharmos com o grupo de teatro sénior ou com o Dona Maria II, o profissionalismo é exactamente igual. Nós trabalhamos com as pessoas de idade maior textos que eu trabalharia com qualquer companhia profissional. Fizemos agora o Sopro de Brecht. Preparámos uma digressão de dois meses para o pessoal de idade maior. Estas pessoas ganharam anos de vida. Quando as pessoas percebem “isto é da nossa cidade, é para nós”, temos isto ganho. E a responsabilidade de um director é esta: ter de pensar em projectos, ter de pensar em processos.