Inicia o seu livro Roma, Temos um problema, com a constatação de que o abuso sexual, de adultos e menores, na Igreja Católica, atravessa toda a história do cristianismo. Faz várias abordagens ao tema e menciona as próprias Escrituras onde há avisos sérios para esse problema. Há aproveitamento da autoridade da instituição pelos abusadores?
O abuso sexual não é um problema exclusivo da Igreja, aliás, o contexto onde ele é mais comum são as relações familiares, mas na Igreja Católica acontece com uma frequência considerável e recebe da instituição uma resposta que tem sido marcada pelo encobrimento, desde há dois mil anos. Enquanto instituição, a Igreja sempre dependeu da “superioridade moral” dos membros do clero, para estabelecer a sua autoridade terrena. Numa comunidade cristã, o poder do sacerdote advém de uma aura de incorruptibilidade moral. É “um homem de Deus”, “um homem de confiança”, um homem de valores inatacáveis que, pela sua relação com Deus, está num plano superior, a meio caminho entre a Humanidade e o divino. A existência de abuso sexual na Igreja, mancharia esta reputação e a instituição, nuns momentos, esforçou-se por punir de modo vigoroso e, noutros, por encobrir.
Por vezes, a comunidade recusa-se mesmo a acreditar nas vítimas. No livro, cita um caso ocorrido em Paião, Figueira da Foz, pouco antes do 25 de Abril, onde isso aconteceu.
É a aura da incorruptibilidade moral. Se ela se desfizer, nada resta para que a instituição se mantenha em pé. A Igreja sobreviveu à queda de países e de impérios, como é que se mantém em pé, após três milénios? Sendo de tal forma importante para as comunidades que, no momento onde lhe são apontadas falhas humanas, o primeiro instinto é recusar acreditar. É inegável a importância social da Igreja. Não consigo imaginar o que seria das respostas sociais aos mais pobres e indefesos, em Portugal, se, de um dia para o outro, parasse toda a sua acção socio-caritativa. O que acontece é que ela sempre teve muito poder sobre a comunidade. Molda o modo como se pensa na sociedade europeia e esse poder advém da ideia de superioridade e autoridade morais, ao ponto de se sentir no direito de dizer aos seus fiéis, o que devem fazer na sua vida privada e o que devem fazer na cama. Por que razão a Igreja insiste em regulamentar o que as pessoas podem ou não fazer na sua intimidade?
No seu livro e no conjunto de reportagens que escreveu com Sónia Simões para o Observador há uma palavra transversal: “silêncio”. Silêncio das vítimas e das famílias…
A natureza dos crimes sexuais leva a isso, sejam ou não cometidos por membros do clero. Cito algumas estatísticas no livro, e há crimes de abuso sexual, em especial contra crianças, que nunca são denunciados às autoridades. Aquilo que chega ao nosso conhecimento é uma pequena amostra dos crimes sexuais, e que nos permite fazer uma projecção da sua prevalência na sociedade. É um crime que tem um estigma e que, psicologicamente, marca muito. No caso português, não basta falar dos crimes que hoje acontecem, é preciso andar para trás. No período do Estado Novo, a Igreja Católica era uma força com um poder terreno muito maior do que muitas autoridades civis. Numa pequena aldeia, vila ou bairro deste País, o padre tinha mais importância do que o presidente da junta. Hoje, já não olhamos para um sacerdote como sendo uma pessoa fundamental da comunidade e estes escândalos têm contribuído, para esse enfraquecimento. Numa comunidade onde o padre é uma “autoridade soberana”, onde o crime quase nunca tem testemunhas, os julgamentos acabam por ser a palavra de um contra a do outro. Durante muito tempo não houve qualquer sensibilidade para perceber o impacto psicológico que o abuso tem sobre uma criança. Isto é, uma criança que tenha sofrido um abuso sexual vai acusar o padre? Em princípio, não. No caso da Figueira da Foz, de que demos conta em 2019, assim que a primeira vítima disse à mãe e ao pai que aquilo tinha acontece, a primeira reacção foi “não aconteceu, tu percebeste mal. Nunca na vida, o padre faria uma coisa dessas!”. Quando, por fim, o pai testemunhou o abuso, o grande medo foi que ninguém acreditasse. Todos estes [LER_MAIS]factores levam a que a maioria das vítimas fique em silêncio. Esse padre acabou por ficar tranquilamente no Paião e viveu até aos 90 anos sem que fosse importunado, mas a família teve de ir embora da aldeia, devido à pressão da comunidade.
“Em Portugal, a estatística é curta”, escreve. É porque os abusos sexuais são tratados internamente pela Igreja e não como um crime público? Isso explica a “surpresa” dos números de crimes anunciados em França?
Não me parece que o que sucedeu em França tenha sido uma surpresa. São números chocantes, que devem ser lidos com cautela. O relatório explica, precisamente, que se trata de uma projecção. As 330 mil vítimas podem ser mais, pois é uma estimativa feita a partir do que foi possível apurar nos arquivos da Igreja. Para quem acompanha o esforço que tem sido feito para lançar investigações, não foi surpresa. No caso francês, como aconteceu na Alemanha e nos EUA, foi a conferência episcopal quem convidou um magistrado para coordenar uma comissão independente para investigar. Tiveram acesso aos arquivos das dioceses, para perceber o que se passara nos últimos 70 anos. Em vários locais do mundo, a Igreja Católica tem dado este passo, em resposta ao apelo do Papa Francisco. Antes de se reparar o problema, é preciso perceber o que aconteceu.
E, em Portugal?
A conferência episcopal nunca admitiu fazer uma investigação. Ao longo dos últimos três anos, perguntei várias vezes ao porta-voz e ao presidente da conferência se estava nos planos. As respostas têm sido, sistematicamente, “não se justifica”, “não há casos conhecidos que justifiquem uma investigação”. Muitos bispos portugueses importantes repetem que, no nosso País, “só houve casos pontuais de abuso sexual no seio da Igreja”. Noutros países, onde os bispos apresentam este argumento, após uma investigação, percebeu-se que, afinal, era um problema sistémico e que havia centenas ou milhares de casos. Quando publicámos o caso do Paião, não foi preciso investigar muito, porque, no tribunal da Figueira da Foz, estavam arquivados documentos, dos anos 70, com a estampa da Diocese de Coimbra. São documentos oficiais, assinados por membros do gabinete episcopal. Eles existem e o caso foi contornado. Se fizéssemos uma investigação, se a Igreja assim o quisesse, teríamos de ser muito ingénuos para acreditar que não encontraríamos mais casos de abuso sexual, além daqueles que se conhecem. A estatística atrás da qual a Conferência Episcopal Portuguesa se tem escudado são dez casos investigados, desde 2001. Alguns foram avante, como o do padre da Golegã, o do Fundão, o de Vila Real, da Madeira…, etc. No capítulo sobre Portugal, lanço mais perguntas do que respostas. Uma das pessoas que entrevistei, foi o bispo Américo Aguiar, presidente da Comissão de Protecção de Menores do Patriarcado de Lisboa, e ele diz “não sou ingénuo para acreditar que, em Portugal, isto não aconteceu”. Admite que, se fosse feita uma investigação alargada, provavelmente, descobríamos casos. Mas, ainda na semana passada, com a publicação do relatório francês, a igreja portuguesa fala da possibilidade de uma comissão nacional semelhante às comissões diocesanas, mas, volta a pôr a possibilidade de não investigar. O padre jesuíta Hans Zollner, presidente do Centro de Protecção de Menores, mentor da cimeira de 2019, com os bispos e organizada pelo Papa, disse ao ABC, que “nos países onde se diz que não há abusos sexuais, é porque ali não se fala de abusos sexuais”. Entrevistei-o e aprofundei esse tema no livro. Ele dá o exemplo da Polónia, onde, durante anos, se dizia que apenas havia “casos pontuais”. Há cerca de um ano, investigou-se e percebeu-se que havia centenas ao longo de anos. É difícil, após ouvirmos as declarações dos bispos e dos responsáveis internacionais, acreditar na Igreja Portuguesa e na ideia de que só houve casos pontuais. Há uma mão cheia de casos que vieram a público e os outros que não vieram porque as vítimas têm vergonha, porque a Igreja teve sucesso no encobrimento. Também entrevistei o cardeal O’Malley, arcebispo de Boston, presidente da Comissão Pontifícia para a Protecção dos menores. Recolhi informação de todas as dioceses nacionais para tentar fazer uma estatística.
Quem seriam as pessoas que constituiriam uma comissão de investigação?
Se tomarmos como exemplo a França e a Alemanha, seriam pessoas sérias, reconhecidas pelo seu trabalho – magistrados, juízes reformados -, que conduziriam uma investigação aos arquivos da Igreja, interrogar pessoas, ouvir vítimas. Com isso, seria possível chegar a um relatório, que não teria um vínculo legal, é certo. Porém, em França, descobriram-se possíveis crimes que ainda não tinham prescrito e foram entregues ao Ministério Público, para serem investigados. Outros, que já tinham prescrito, poderiam ser encaminhados para os tribunais eclesiásticos, e poderiam levar a penas de suspensão para os sacerdotes ou compensações para as vítimas. Na Austrália, houve uma comissão parlamentar de inquérito e o relatório teve um peso jurídico maior. Em Portugal, creio que isso seria difícil porque as comissões parlamentares têm um âmbito mais específico, no âmbito de actuação do Governo. A Igreja Portuguesa tem consecutivamente recusado fazer uma investigação. Até se pode chegar ao fim dessa investigação e concluir que nada aconteceu em Portugal. Mas, nem a Igreja acredita nisso!
Segundo escreve, os abusos não são apenas cometidos pelo clero.
Há uma cultura de encobrimento na Igreja Católica que ajuda a que os abusos sexuais proliferem. Há a tentação de ligar o celibato dos padres aos abusos e de dizer que, “evidentemente, eles são abusadores sexuais porque a Igreja os proíbe de fazerem sexo”. A relação não é evidente, até porque encontramos casos nos protestantes, nos ortodoxos, nos anglicanos e noutras denominações cristãs onde os padres podem casar e noutras religiões. A ligação que pode ser encontrada entre o celibato e os abusos é que são ambos reflexo de uma relação muito conturbada da Igreja com o sexo. Isto vem desde o início, de uma inspiração filosófica que opõe corpo contra espírito, corpo mau contra espírito bom, carne contra alma. Esta dicotomia, que associa a pureza do corpo à pureza espiritual e a impureza do corpo à impureza espiritual levou, desde cedo, o cristianismo a impor aos seus sacerdotes o celibato. Além dos motivos mundanos para o fazer, como a questão das heranças, há a ideia de que os padres são puros. Se o mundo da carne e do sexo é impuro, então os sacerdotes, por estarem livres dessa abjecção corporal, são puros e estão acima dos outros humanos, que têm de se sujeitar ao sexo para terem filhos. Como estão acima, livres dos pecados do corpo, têm uma autoridade moral sobre os outros. À medida que a Igreja foi consolidando esta separação entre homens puros, sem vida sexual, e impuros, com vida sexual, foi-se tornando incómodo que um dos seus ministros se revelasse, afinal, impuro. Cada vez que um abuso sexual era conhecido, era uma machadada nessa autoridade e a Igreja começou a apertar o cerco aos abusadores. E isso, numa fase, traduziu-se em “condená-los de um modo tão brutal que a sociedade vai perceber que não toleramos isto”, o que, no século XIX, evoluiu para “não vamos dizer nada e vamos encobrir”. No século XX, com a Igreja Católica transformada numa instituição com muito poder terreno, com escolas, com creches, com orfanatos e organizações sociais e muita implantação na sociedade, esta filosofia de encobrimento criou um ambiente seguro para os abusadores sexuais. Nos últimos anos, este é o problema que a instituição tem tentado resolver, muito por influência do Papa Francisco que diz que “a Igreja não é perfeita. Não é composta por gente perfeita. Tem muitos erros e falhas e tem de se submeter às leis da sociedade”. Durante muitos anos, houve a tentação de estes crimes serem julgados apenas pelos tribunais da Igreja. A Igreja não tem competência para investigar crimes, quem tem é a Polícia Judiciária.
O Ambiente é um dos temas que trata no Observador. Acredita que, tal como fez com a Covid-19, o Mundo vai actuar para resolver as alterações climáticas?
A crise climática é um problema de longo prazo e os ciclos políticos são de curto prazo. A maioria das medidas concretas de combate a essas alterações não têm efeitos positivos imediatos. Há a dificuldade em encarar as alterações climáticas como um problema verdadeiramente nosso. Quando nos dizem que a temperatura vai, por exemplo, subir mais um grau, achamos pouco, mas esquecemos é que um grau, em média, obriga a que a temperatura máxima suba muito. Vamos ter zonas que se irão tornar inabitáveis. Mais tempestades, mais incêndios. Mas não são problemas a curto prazo como a Covid, e como tal, é muito fácil suspender a preocupação climática.
É natural da vila da Vieira de Leiria… na véspera de mais um aniversário da sua destruição, acredita que ainda voltará a ver o Pinhal do Rei recuperado?
Tenho essa esperança. Estava em Londres quando ele ardeu. Foi surreal. Comecei a ver notícias no telefone sobre incêndios na zona de Leiria e comecei a perceber que era o pinhal. À distância, senti-me muito impotente. Como poderia ter ardido aquele pinhal todo? Quando regressei e fiz a estrada da Marinha Grande para a Vieira, quase me vieram as lágrimas aos olhos. Toda a minha vida tinha visto o pinhal ali. Vou vendo algumas replantações, mas não sei se o verei recuperado a médio prazo.
João Francisco Gomes, 25 anos, jornalista, natural da Vieira de Leiria (concelho da Marinha Grande), conta que a figura do pai, jornalista na Lusa, foi determinante para o seu amor pela profissão. “Foi a minha principal inspiração. Desde miúdo que ia com ele às conferências de imprensa.”
Desde cedo, interessou-se pela religião.
“Tenho um percurso dentro da Igreja Católica. Fui escuteiro desde os 6 anos, andei no pré-seminário, pus seriamente a possibilidade de ser padre, que, depois, seriamente, também retirei. Desde sempre me considerei cristão, católico e o cristianismo foi uma orientação fundamental.”
No ensino, primeiro enveredou pelas Ciências e Tecnologia, tal como a mãe, engenheira química. Mas, no fim do secundário, viu que o caminho era o jornalismo. Ingressou na Escola Superior de Comunicação Social, em Lisboa, fez estágio no jornal digital Observador e aquele modo novo de fazer jornalismo entusiasmou-o e foi convidado a ficar.
Pelo meio, concluiu o mestrado em Ciência Política, na Universidade Nova, sobre a relação entre os jornalistas e o poder político durante a integração europeia portuguesa.
Hoje, quinta-feira, dia 14 de Outubro, lança o livro: Roma, temos um problema.