Qual o maior desafio para um director de uma prisão regional?
É conseguir cumprir a missão e ter os meios necessários. A nossa vocação é particularmente na recepção de presos preventivos na área de 21 comarcas. A questão da reinserção e da reeducação é transversal a todo o sistema, mas estamos mais focados no transporte e na apresentação de presos aos tribunais.
E têm meios?
Cada vez menos. As dificuldades são muitas. A frota automóvel poderia ser melhor, mas vai sendo suficiente. As dificuldades são mais ao nível dos meios humanos. Idealmente deveríamos ter cerca de 60 guardas prisionais e estamos abaixo dos 50, numa prisão cuja capacidade é de 110 reclusos, o número de detidos que temos actualmente. Mas regularmente estamos em sobrelotação.
Há demasiada prisão preventiva?
Há 34 anos havia muito mais prisão preventiva. As alternativas à cadeia são cada vez mais e têm surgido as penas suspensas, os trabalhos a favor da comunidade e as pulseiras electrónicas. Há uma luta constante contra o encarceramento e isso traduz- se de facto em menos presos. Fizemos um grande avanço em termos de toxicodependência, que enchia as cadeias. Se pensar nos presos que tive em Ponta Delgada, no princípio dos anos 90, hoje garantidamente estariam numa comunidade ou a aguardar julgamento em casa, porque não eram traficantes, mas acima de tudo consumidores.
O Estabelecimento Prisional de Leiria está a precisar de obras?
Com certeza que sim. Este estabelecimento começou por ser uma cadeia comarcã, propriedade da Câmara de Leiria. Quem tomava conta da cadeia era um funcionário da Câmara, que era o carcereiro. Tanto quanto sei, nem sequer havia guardas. O carcereiro ia ao Ministério Público e ao Tribunal, e os presos mais bem comportados é que acompanhavam os outros. No final dos anos 70, a lei determinou o encerramento de muitas dessas cadeias e foi criada uma cadeia para servir uma região, daí a sobrelotação. Houve investimentos no final dos anos 90, mas, por razões que desconheço, não foram feitos aqui. Quando se começou a pensar em encerrar este estabelecimento e integrá-lo em pavilhões na cadeia dos jovens deixou de haver vontade para investir. Fazemos apenas a manutenção.
Concorda com o encerramento?
Eu, que tenho feito a minha vida em cadeias desta dimensão, onde um director conhece o preso e o preso conhece o director, percebo que há um interconhecimento muito grande e até uma humanização e proximidade. Idealmente [cadeias] deveriam ser unidades pequenas do tamanho desta. Mas as economias de escala impõem outras opções.
Qual a vantagem dessa proximidade?
É enorme. Quando vou pronunciar-me acerca das liberdades condicionais dos presos, é muito importante conhecermos o preso e as suas características e não só passar aquilo que está escrito nos relatórios. A fuga de Vale dos Judeus pôs a nu falhas nas cadeias. Também há falhas de segurança em Leiria? Em todos os estabelecimentos é possível haver falhas. E quem nos indica onde estão essas falhas são os próprios presos. Normalmente, depois de acontecerem as situações é que vamos tentar identificar e suprir essas debilidades do sistema. Depois de Vale de Judeus, está-se a perspectivar reforço de segurança em todos os estabelecimentos. Os avanços tecnológicos andam sempre à nossa frente, seja à frente da criminalidade, das investigações criminais, seja também a nível da segurança dos estabelecimentos prisionais e da sociedade. Os telemóveis permitem muita coisa e conseguem entrar nos estabelecimentos. Isso permite muito contacto com o exterior e facilita muito essas acções.
Como é possível entrar droga e, sobretudo, telemóveis, nas cadeias?
Há conivência de funcionários? As pessoas têm a ideia que os presos estão fechados e não contactam com ninguém. Apreendemos regularmente droga nas visitas. Há alguns que também vão a casa em saídas e já detectámos entradas de telemóveis, mas há sempre a possibilidade de disfarçar, através de métodos sobre os quais não vou entrar em pormenor. Levanta-se sempre a questão dos funcionários poderem colaborar, mas tenho a certeza que a maior parte não o faz.
Acredita realmente na reabilitação dos reclusos?
Um director não pode deixar de acreditar. É evidente que temos de ser realistas e pensar que há uma franja que dificilmente conseguirá, mas não devemos deixar de apostar neles. No entanto, encontramos indivíduos que passaram por aqui e que hoje estão bem. Temos muitos problemas nas cadeias ao nível da saúde mental. Tudo cai aqui. Temos muitos que vêm por tráfico, mas são consumidores. Outros conduzem alcoolizados e o problema deles de base é o álcool.
Os problemas mentais estão associados a crimes específicos?
O País tem uma rede de estabelecimentos que são a porta de entrada no sistema. E nós integramos essa rede. Portanto, recebemos as pessoas directamente da rua. Não está aqui em causa o tipo de crime. Todo o indivíduo que é preventivo à ordem das comarcas que servimos dá entrada aqui. E outros que vêm para julgamentos. É interessante que ao acompanharmos a comunicação social traçamos uma ideia, como qualquer cidadão, acerca dos indivíduos que cometeram os crimes. E depois deparamo-nos com situações que até dão pena. No outro dia ouvi alguém dizer que quando nascemos entramos em duas roletas: da sorte e do azar, que tem a ver com o ADN que nos calha, e a roleta do social. Uns têm mais sorte com a família que lhes calha, outros têm mais azar. Isto determina muita coisa.
Isso pode também explicar a razão de alguns reclusos voltarem a cometer crimes?
Sim, até porque muitos deles voltam para o seu meio de origem. O trabalho de reeducação nas cadeias devia ser muito mais conciliado com o trabalho social do meio. O indivíduo vem de um determinado bairro e quando sai da cadeia vai voltar a conviver com as mesmas pessoas, e os mesmos valores. Devemos é compreender como é que o indivíduo que vem à cadeia uma, duas, três ou dez vezes, consegue viver uma vida inteira dessa forma. Isto é alarmante. Mas também é verdade que há indivíduos que já nasceram nas cadeias ou que desde miúdos visitam os pais na cadeia. Portanto, isto é visto com naturalidade, pois é um modus vivendi.
Alguns, se calhar, até se orgulham.
O verdadeiro criminoso tem o seu currículo como qualquer um de nós e faz disso alarde perante os outros. Até para sobreviver no meio prisional, porque nestes meios a ascendência e a força são importantes.
Concorda com os projectos de reintegração?
Há muita coisa. Tanto de entidades estatais como privadas. Há uma específica que devo citar e que resulta de protocolos entre o Ministério da Justiça e o Ministério do Trabalho, onde são ministradas formações profissionais idênticas às praticadas na comunidade, com remuneração e com todas as prerrogativas que têm os formandos nos centros de emprego. No que toca à educação, são as escolas do meio livre que destacam professores para virem aos estabelecimentos prisionais.
Vê a prisão como um lugar de castigo?
Antes de mais, vejo a prisão como algo que já não deveria existir no século XXI. É pena e estranho que o ser humano ainda não tenha arranjado uma alternativa à prisão. Apesar de todas as diferenças que hoje existem, o princípio é o mesmo: o encarceramento. Idealmente, deveríamos acabar com este modelo. À medida que vão aparecendo soluções tecnológicas vamos aplicando- -as, como as pulseiras electrónicas, que equivalem neste momento a um grande estabelecimento com mil e tal lugares. Temos de encontrar soluções deste género, porque o encarceramento causa lesões nas pessoas e perturbações a nível familiar.
Qual é o modelo que idealiza para as prisões?
Não podemos ir muito além deste modelo actual, que tem um regime mais fechado (comum), onde temos 85 detidos, um regime aberto no interior, com 25 reclusos, e um regime onde o indivíduo já anda numa situação de meia-liberdade, que é o regime aberto exterior (duas pessoas). Mas cada caso é um caso, cada criminoso é um criminoso, cada crime praticado e o risco são diferentes. Temos 54 presos preventivos, 25 reclusos a cumprir pena até dois anos e 31 com penas superiores a dois anos.
O que é que pensa da evolução das penas alternativas em Portugal?
O caminho é esse. Mas, infelizmente, há muitos que inevitavelmente vão sempre cair aqui. Muitas vezes a criminalidade tem muito a ver com o grupo e é difícil fugir disso. Temos reclusos que, individualmente, são bons cidadãos, mas em grupo não. Não têm competências mínimas a nível de estrutura mental para sobreviver na sociedade. Esta sociedade é um comboio que nem todos conseguem apanhar e alguns ficam para trás. O refúgio acaba por ser estas casas, que têm um papel social importante. Na ausência de respostas sociais, as cadeias são sempre o último reduto para a resolução dos problemas sociais. Tudo o que falha a montante acaba aqui.
Devia haver mais respostas a montante na sociedade?
Há bastantes serviços, mas também é verdade que há muitos indivíduos que não se querem sujeitar a eles, porque não querem regras nem laços familiares. Aqui também há regras e disciplina, mas têm alguém que os orienta. Há indivíduos que funcionam muito bem e que são óptimos cidadãos nas cadeias. São respeitadores e empenham-se. Lá fora, perdem-se completamente. Se calhar, há indivíduos que nunca deveriam deixar de estar ligados às instituições.
Que respostas existem ao nível da saúde mental? A saúde nas cadeias evoluiu extraordinariamente. De tal maneira que, de um momento para o outro, vimo- -nos sem gabinetes para trabalhar. Temos apoio psicológico, psiquiatra, pessoal de enfermagem do quadro e médicos. Trabalhamos hoje a saúde mental como nunca a trabalhámos.
E há também programas para a prevenção de suicídio?
Sim. À data de hoje temos um indivíduo que está com observação durante o período nocturno na cadeia de Leiria, no âmbito da prevenção do suicídio. Há ainda programas que se centram em determinadas tipologias criminais, como os crimes sexuais e estradais. Aqui não temos esses programas, mas transferimos os reclusos para os estabelecimentos onde eles existem. Também temos programas mais básicos relacionados com a adaptação ao meio prisional, a estabilidade emocional, etc. Além da saúde, onde talvez o sistema prisional mais avançou foi nos programas. A estratégia de juntar indivíduos com a mesma problemática e trabalhar com eles para que possam alterar o seu comportamento é um grande avanço no sistema prisional.
Há realmente um aumento de crimes praticados por imigrantes?
Havendo mais estrangeiros é natural que haja mais estrangeiros detidos. Mais do que o número é a diversidade de nacionalidades. Mas, os nacionais também cometem crimes e ainda não vejo grande diferença. O que poderá fazer diferença é a criminalidade organizada. Temos alguns crimes que têm relações internacionais, mas se isto está ligado a grandes organizações criminosas, não posso afirmar.
O que falta no sistema prisional?
Onde estamos mais atrasados é nas visitas íntimas. Está na lei e sou plenamente a favor, mas requer condições de dignidade, espaço e investimentos. Já fizemos uma proposta para os serviços centrais há uns anos. Esta questão das visitas íntimas tem muito a ver com a humanização e com a manutenção dos laços familiares, que são muitas vezes quebrados pelo encarceramento.
As cadeias estão mais humanizadas?
Pode-se sempre fazer melhor, mas a cadeia tem uma parte que nunca pode ser humana, que é o facto de se estar privado da liberdade. Os animais é que costumam estar encarcerados. Acredito que a dimensão [das prisões] conta muito para a questão da humanização.