A Liga dos Bombeiros considerou “um desrespeito” dizer que não se cria um Comando Nacional de Bombeiros porque não estão preparados. Como reage às declarações do presidente da Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil (ANEPC)?
É um ataque demasiado grave, mau e não foi feito de ânimo leve. Na entrevista destrata os bombeiros de Portugal e provoca-os. Se estivéssemos a lidar com gente com carácter tinha-se demitido. Nos últimos 5/6 anos a vida das associações de bombeiros não tem sido fácil. É demasiado mau o que está a acontecer com os bombeiros.
O que é que está a acontecer?
Os bombeiros de Portugal têm sido alvo de ataques políticos, desde 2005, quando o ministro da Administração Interna [António Costa] entendeu que devia hostilizar os bombeiros e retirar-lhes o papel que tinham na protecção civil. Numa tentativa de substitui-los foram criados vários organismos, como os canarinhos, os sapadores florestais e os GIPS da GNR. Aliás, neste momento, por lei, os bombeiros nem têm competências no combate aos fogos rurais. Está-lhes atribuída só a defesa do interface urbano rural. No entanto, quem aparece a combater os incêndios rurais são os bombeiros. Ao longo dos anos, os bombeiros começaram a ser a fonte que guarnecia de recursos humanos os diversos organismos do Estado. Até 92% da estrutura de direcção e o comando da ANEPC são oriundos dos bombeiros. Tudo isto provocou uma sangria muito grande nos corpos de bombeiros, que estão sub-financiados pelo Estado e não têm fontes de receita para competir com os ordenados pagos pelos organismos do Estado. Isto tem sido muito complicado e tem provocado uma situação gravíssima a nível de voluntariado, que também advém do facto de não haver regalias palpáveis para atrair voluntariado.
Também sentem falta de voluntários?
Muito. Mas se nos meios urbanos já o sentimos, no interior do País ainda mais se sente, até porque com a desertificação não há pessoas, logo também não há bombeiros. Neste momento, a falta de bombeiros no interior está-se a reflectir na assistência às populações. Aliás, não tenho dúvidas que a qualquer momento pode começar a surgir uma nova ordem nos bombeiros de Portugal, que se separa totalmente das actuais estruturas e se começa a organizar. Exactamente da mesma maneira que há cerca de 70 anos surgiu o movimento que criou as associações humanitárias e os corpos de bombeiros voluntários. Por que é que surgiram? Precisamente porque as pessoas começaram a ter necessidade de uma melhor qualidade na área do socorro. Como o Estado não lhes proporcionava isso a sociedade civil organizou. Entretanto, ao longo dos anos, foi-se apropriando indevidamente dos corpos de bombeiros porque tinha mão-de-obra barata, mas foi passando a ideia de que o Estado pagava tudo. Isso é mentira. A sociedade civil continua a suportar uma grande parte daquilo que é necessário para continuar a ter os corpos de bombeiros em funcionamento. Neste momento, está-se a entrar num beco sem saída. Temos muitas associações de bombeiros em situação de insolvência, com penhoras, etc. Há associações que não conseguem pessoas para os órgãos sociais, porque é uma responsabilidade muito grande e já perceberam que estão a ficar totalmente desprotegidas por parte do Estado.
Como estão as contas da Associação dos Voluntários de Leiria?
Temos as contas equilibradas, apesar de termos sofrido um revés muito grande com o pagamento de cerca de 230 mil euros à ANEPC, resultado de denúncias anónimas, que nunca foram anónimas, porque estão relacionadas com o problema com os [Associação] Cardosos. Até nisso os Bombeiros Voluntários de Leiria (BVL) foram alvo de uma injustiça muito grande. Há 25 anos que trabalhávamos naquele sistema. Todos os anos comunicávamos à ANEPC e vinha o dinheiro para o dispositivo. Tínhamos um dispositivo de 15 elementos, mas se estivessem 40 ou 50 disponíveis, o dinheiro era dividido por todos. Por causa disso é que conseguimos ter muitos elementos e ter um grupo especial de intervenção terrestre ao serviço da autoridade, que percorria o País no combate aos incêndios, quando eles ficavam mais violentos. Estamos a devolver à autoridade cinco mil euros por mês.
Como têm sido estes 40 anos do BVL ao serviço da população?
Os BVL aparecem porque tinha havido políticas erradas na área dos bombeiros. A câmara tinha procedido à extinção do corpo de bombeiros voluntários que havia em Leiria, que tinha um apoio directo do município, que lhes fazia pagamentos simbólicos por serviços que prestavam. Leiria estava no sentido correcto. Entretanto, construíram o quartel de sapadores e convenceram- se de que estava feito o mais difícil e extinguiram os bombeiros voluntários. Só que isso veio mostrar-se uma política errática e com graves consequências para o concelho. Começámos a ter uma maior quantidade de fogos florestais e os bombeiros ditos municipais não chegavam para as encomendas, mesmo para combater incêndios urbanos e industriais, obrigando-os a recorrer aos concelhos vizinhos. Foram criados os bombeiros voluntários da Maceira e passado meio ano surgiu um movimento gerado pelos antigos bombeiros voluntários que criaram uma corporação. Leiria tinha a componente voluntária já semi-profissional, que era o ideal. Aliás, nos países mais desenvolvidos da Europa temos um sistema misto em que há pequenos quartéis com grupos entre 8 a 10 profissionais e depois têm adstritos 40 ou 50 voluntários, que estão disponíveis sempre que é necessário. Com uma diferença, as pessoas são voluntárias para desempenhar aquela função, mas por cada minuto que fazem são pagas. E as entidades patronais têm benefícios fiscais para que os possam disponibilizar. Ou seja, conseguem ter uma quantidade de bombeiros sempre que são necessários e não são um custo tão grande para o erário público. Em Portugal, o Estado explora ao máximo os bombeiros voluntários.
Os municípios deveriam apoiar mais?
Sem dúvida. Mas não pode ser cada município a colocar as suas medidas em prática isoladamente, o que já está a provocar uma concorrência desleal entre municípios. Tem de haver uma política global. O Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais não é honesto. Pretende-se ter homens 24/24 horas ao serviço do combate aos incêndios rurais a pagar 4,20 ou 4,80 euros à hora. Depois, a ideia cega de substituir os bombeiros no combate aos incêndios fez com que ao longo destes últimos 25 anos o Estado não tivesse um plano de reequipamento dos corpos de bombeiros. Neste momento, temos organismos que o Estado criou para combater fogos rurais, equipados com tudo o que é de mais moderno, mas que só trabalham entre as 9 e as 5 da tarde. Aos sábados e domingos, não há nada para ninguém. Os bombeiros, que são o grosso do dispositivo, têm de andar a combater incêndios florestais, com viaturas na ordem dos 30 anos.
Os bombeiros não têm tido força de reivindicação?
Os bombeiros não têm capacidade de reacção no que diz respeito a reivindicações, porque têm carácter, têm ética e põem o socorro às populações à frente de tudo. Por isso é que os bombeiros têm pudor em ouvir falar da palavra greve. Se os bombeiros não tivessem esse amor à população que servem e parassem a nível nacional, ao fim de meia hora estaria instalado o caos. Mas há muitas outras coisas que os bombeiros podiam fazer para mostrar a sua posição, mas há indivíduos que transformaram os bombeiros no trampolim para a vida política. Quando decidimos medidas num congresso por unanimidade, no dia seguinte isso é furado.
Hoje os BVL estão melhor preparados?
Os BVL estão melhor preparados, mas temos falta de recursos humanos e a quantidade de solicitações aumentou de tal ordem que fazem com que não consigamos responder a todas as solicitações. Temos uma recruta pendente, mas as burocracias são de tal ordem que ainda não temos os 12 elementos a prestar serviço. Os bombeiros portugueses são altamente competentes naquilo que fazem, têm formação e instrução. O problema são as condicionantes. Por exemplo, os BVL há 28 anos que não são apoiados pelo Estado na aquisição de uma viatura de combate a fogos rurais. A população de Leiria está a crescer muito e com isso surgem os problemas na área da emergência pré-hospitalar, acidentes de viação, acidentes de trabalho. O nosso dia-a-dia é muito violento, mas o pessoal que temos é competente.
De que forma o encerramento das urgências do hospital de Leiria vos tem prejudicado?
Isso é um constrangimento grande para a população e reflecte-se nos corpos de bombeiros. Há momentos em que temos urgências em lista de espera para atender. Estando o hospital a funcionar normalmente, uma emergência normal demora no máximo 40 minutos, ficando a ambulância e a tripulação disponíveis para outras chamadas. Neste momento, somos enviados para a Figueira, para Coimbra e estamos a falar até seis horas, já para não falar das retenções das macas dos bombeiros, que é outro problema aflitivo.
O que levou ao encerramento da secção dos Cardosos?
Fechámos o quartel, porque não tínhamos recursos humanos. Àquela data estavam 24 bombeiros a prestar serviço: sete estavam destacados do quartel sede. Num determinado momento, 17 bombeiros, por motivos fúteis, que até não estavam previstos na lei, pediram a passagem ao quadro de reserva. Não vamos enganar as populações e ter um quartel aberto. Já durante a semana, os poucos bombeiros que iam fazer serviço como voluntários às 4/5/6 da manhã telefonavam a dizer que tinham de ir embora e nós mandávamos para lá bombeiros daqui. Só ao fim-de-semana é que faziam os piquetes completos. O fecho daquele quartel iniciou-se 7/8 anos antes, quando os políticos tomaram a decisão errada de tirar o quartel de Santa Catarina, onde havia mais de 40 bombeiros, para ali. Na zona do Arrabal e da Caranguejeira nunca conseguimos captar voluntariado, porque naquela zona há muito associativismo.
Mas já existia um quartel nos Cardosos construído pela população.
Contrariamente àquilo que é dito, isso é história. A população teve muito mérito, contribuiu muito. Mas o grosso do dinheiro foi do Município de Leiria e dos BVL. Depois é preciso manter aquilo. No início havia o compromisso daquela associação colaborar com uma série de coisas que, a pouco e pouco, foram deixando de fazer. Para criar um corpo de bombeiros são precisos recursos humanos.
As tecnologias e o combate têm evoluído, mas os incêndios continuam. É uma inevitabilidade?
O fogo é um dos elementos da natureza que é essencial à sobrevivência do Homem. Agora o fogo tem de ser bem utilizado e controlado. O controlo tem de começar logo na política de gestão do ordenamento e reordenamento do território. É preciso força política, que não pode ceder a lobbies. Temos de, uma vez por todas, decidir o que é que queremos fazer da utilização da terra. Vamos geri-la com os mosaicos, utilizando as espécies que são mais resistentes ao fogo alternadas com outras menos resistentes. Se cinco metros nos aceiros eram suficientes, com as alterações climáticas temos de ter 100 metros. Se a gestão da mata no nosso País fosse feita como deve ser, ela era auto-suficiente e criávamos muitos empregos.
Como reage às críticas que dizem que o Almeida Lopes se apoderou dos BVL?
Quem trabalha comigo sabe que não estou agarrado a rigorosamente nada. Em 2017 foi por minha iniciativa que decidi deixar de ser comandante no activo e poderia ainda sê-lo mais nove anos. Quiseram que ficasse como membro da direcção. Entretanto, por razões profissionais, o Luís [Lopes], que tinha ficado como comandante, saiu e criou-se uma instabilidade, porque apareceram pessoas com sede de poder. Disse que não assumia o comando, mas a direcção pediu-me para colaborar. Não me passava pela cabeça exercer mais função nenhuma. Quando esta direcção chegou ao fim do mandato pediram-me para avançar, mas dei como condição que me retirava se aparecesse outra lista. Serei o presidente dos BVL até 31/12/2025. Estamos a fazer um trabalho de preparação dos sócios para tomarem conta da associação.
Conseguirá desligar-se dos BVL no final do mandato?
Ficarei sempre nos BVL no quadro de honra. Já ando a prometer isso à minha família, há 10 ou 12 anos. Tenho os meus dois mil castanheiros na minha santa terrinha que são muito importantes para mim e tenho de tratar deles. Contrariamente àquilo que muita gente pensa, há decisões tomadas com as quais não concordo, mas que executo, mesmo engolindo sapos vivos.