Acabou no fim do mês de Fevereiro uma semana de trabalho com o colectivo teatral Leirena, em Leiria. Tinha como objectivo a abertura de novos caminhos para a nova produção da companhia?
Fizemos um laboratório para o novo espectáculo que o Leirena está a montar. Chama-se A Paz e é baseado na comédia escrita por Aristófanes. Estudámos como iríamos levar a acção à cena e qual a estética a ser utilizada. Falámos ainda da dramaturgia, ao mesmo tempo em que fazíamos exercícios e experimentámos cenas. Fomos discutindo a maneira como contar aquela história ou como ela poderá ser adaptada. Foi uma semana de buscas. Não conhecia os actores e, na verdade, o que fizemos foi brincar, mas uma brincadeira que passou por um jogo pedagógico e cénico.
É um trabalho partilhado.
É colectivo. A ideia por detrás da minha presença em Leiria não foi eu dar uma "formação", mas era mais para ver as necessidades de cada um, mudar certos aspectos do jogo cénico, da qualidade de movimento, do foco… trabalhar isso e explorar, em simultâneo, novas ferramentas cénicas, experimentar coisas que eu próprio jamais testei e jogar com isso! Isto foi o começar de um processo, foi o lançar de uma semente. Todos nós, actores, somos solo e agricultores. O Teatro é uma coisa colectiva e o processo criativo de que eu gosto passa pela existência de um actor-autor e não de um actor-marioneta. Quando eu próprio era apenas actor, também queria ser criador de espectáculos, porque, de outro modo, aquilo não era meu. Era apenas de alguém exterior a mim.
No Leirena teve oportunidade de trabalhar com actores veteranos, como João Moital, e com outros quase acabados de sair do curso superior de teatro.
O João é um homem muito interessante. Aquele homem poderia ter tido uma carreia como actor profissional, porque tem um interior muito rico…
Tem ajudado pequenas companhias, fora de Lisboa, a montar espectáculos e a alterar o modo de trabalho. Trabalhou agora com o Leirena, mas também tem colaborado com o TAP, de Pombal, com o Peripécia, com o Ajidanha de Idanha-a-Nova…
E com os Gambuzinos Com 1 Pé de Fora, da Benedita, com quem encenei Antes a Morte que Tal Sorte, uma adaptação, da obra As Intermitências da Morte, de José Saramago… Hoje, percebe-se que há um modo menos amador de fazer teatro. Não me interessa se trabalho com profissionais ou com amadores porque teatro é teatro, seja com quem for… e eu gosto é de teatro. O que interessa é a criação colectiva. Até aos 12 anos, vivi a guerra em Moçambique e não havia brinquedos. Imaginávamos tudo na nossa cabeça, à mesa onde nos juntávamos para as refeições e onde criávamos mundos. Ainda hoje, gosto de me juntar com amigos… é por isso que faço amigos em qualquer sítio. Gostamos de teatro e se temos esse universo comum, podemos ser todos companheiros. Quando trabalho com outras companhias, vou brincar – mas este brincar não é de brincadeira -, é brincar a algo que vamos construir em conjunto.
O título de "director artístico da Companhia de Teatro do Chapitô", cria um certo temor reverencial entre os actores das companhias pequenas a quem dá apoio?
Eles têm um certo cuidado perante o “estatuto”. Quando temos um "estatuto", não sabemos que o temos… As outras pessoas é que nos dão esse estatuto. Eu chego como uma pessoa que não tem estatuto algum… e não tenho consciência sequer de o ter. Antigamente, a minha luta era conseguir chegar em igualdade ao pé dos outros, agora é ao contrário. Põem-me esse estatuto e eu quero é descer do "pedestal" e ser igual. Trabalho com companhias de Múrcia, Cáceres e País Basco e os espanhóis ficam logo com expectativas de participar em prémios… faço cinco a sete encenações por ano, entre teatro e direcção de novelas e sinto dentro de mim uma necessidade de fazer, de partilhar. Há anos que não paro. Se estiver três dias sem nada para fazer, já sinto que não presto para nada!
Foi aluno de Teatro de Andrzej Kowalski, que, há mais de 40 anos, se radicou em Leiria…
O Kowalski e o Kotek, os meus professores polacos, tornaram- se grandes amigos e companheiros e ensinaram-me muito. Quando era miúdo, almoçava todos os dias com eles. Foi um grande privilégio poder ter, aos 21 anos, a companhia de pessoas que têm um conhecimento extraordinário do ofício. São verdadeiros mestres na sua área. Houve outros que me ensinaram o ritmo, outros a qualidade de movimento, mas tive a sorte de beber a arte com os melhores.
E o público português?
O gosto e o conhecimento do teatro evoluiu desde esse tempo? Não há apenas um público. Há muitos. Há públicos para todos os géneros de teatro, de música… Prefiro a ideia de que há "públicos" e não apenas "um público". Gosto também da ideia de ter uma companhia que consiga abranger a maior parte desses públicos. O público de revista e de outros géneros teatrais é diferente daquele que vê as coisas que nós fazemos, não obstante, agrada-me a ideia [LER_MAIS] de poder trabalhar para um miúdo de oito anos que apreende a peça de uma forma e de poder trabalhar para alguém com 80, que sai do espectáculo contente, porque viu e entendeu um clássico como Romeu e Julieta. Se tivermos 120 pessoas a ver um espectáculo, cada uma delas verá o espectáculo de forma diferente. A ideia de não dar tudo e deixar as pessoas preencherem o resto com a imaginação faz com que o público não seja passivo e que tenha de jogar e brincar com os códigos que lhe estão a ser lançados. Gosto do teatro que mantém o público activo. O Hamlet, que estreámos no Chapitô e que passa na Benedita, na sexta-feira, é muito difícil se o público não estiver a jogar connosco.
Companhia do Chapitô fundada há 23 anos
José Carlos Garcia é o director artístico da Companhia de Teatro do Chapitô e esteve em Leiria no fim do mês passado para ajudar o Leirena Teatro a explorar novos processos criativos, com vista à construção de A Paz, a partir do texto de Aristófanes, a nova produção do colectivo da cidade do Lis.
O encenador nasceu em Moçambique em 1969 e há 23 que fundou a Companhia de Teatro do Chapitô iniciando um percurso que tem valido, a si e ao colectivo sucessos nas artes de palco em Portugal e em Espanha.