O barulho do motor chega de mansinho aos ouvidos dos 24 meninos da escola do Carriço e há inquietação nas cadeiras. Já é Dezembro, as duas salas estão decoradas como manda o Natal, e cada um dos alunos sabe que che- gou a hora de levar novos livros para ler em casa.
“É sempre um entusiasmo, quando chega a biblioteca”, confirma ao JORNAL DE LEIRIA a professora Maria Irene Mendes, ao mesmo tempo que ordena os nove miúdos que lhe restam, entre o 2.º e o 4.º ano. Cada um deles pega no cartão de leitor e nos livros que levou para casa no mês passado.
Embora a maior parte tenha livros em casa – a par dos computadores, tablets ou telemóveis que con- correm tanto com as folhas de papel encadernadas, levando quase sempre a melhor neste despique – a visita da Biblioteca Itinerante continua a ser um acontecimento.
“Quando voltam à sala, com os livros, a primeira coisa que fazem é espreitar cada um deles. Depois levam para casa. Quando terminam de ler, trazem de novo e ficam aqui, no armário, para não correrem o risco de ficar esquecidos”, conta a professora. Uma vez por outra, lá acontece.[pub-by-id pubid=’201′ f=’1′]E nesse caso não podem levar os dois livros prometidos, pois que só com a devolução é possível nova requisição. E há de tudo, naquela carrinha adquirida pelo Município de Pombal em 2015, para substituir a velhinha viatura herdada da Fundação Calouste Gulbenkian, que há 50 anos levou os livros a todo o país através das bibliotecas itinerantes.
Chama- se agora “Bibliomóvel”, mas o conceito mantém-se: uma vez por mês será possível ter acesso a parte do espólio da biblioteca e levar novos livros para ler e descobrir, em cada uma das freguesias do concelho.
“O objectivo do Bibliomóvel é descentralizar a oferta da Biblioteca Municipal, fazendo-a chegar a todos aqueles que tenham mais dificuldade em dirigir-se à sede do concelho e aí usufruir dos seus serviços”, justifica o município. Na história das bibliotecas itinerantes, a Batalha ocupa também um lugar de destaque. Foi umas das primeiras a serem inauguradas (entre Junho e Dezembro de 1958).
As últimas quatro Bibliotecas Itinerantes do distrito integram o total de 73 que se mantêm activas em todo o país, segundo a página anavevoadora.wikifoundry.com, que regista esse espólio cultural.
É em Viseu que persiste o maior número (9), seguido do Porto e Aveiro, ambos com 8 carrinhas. Em abril do próximo ano a Biblioteca Municipal de Pombal organiza um encontro nacional, que contará com a presença dessas últimas resistente da itinerância.
Quando o projecto terminou, muitas Câmaras optaram por herdar esse legado, continuando a levar livros às aldeias, agora num trabalho especificamente dirigido às escolas. Os tempos são outros, “os meninos também”.
Ana Marreiros e Paulo Branco – a dupla da Biblioteca de Pombal que dá corpo e alma à Itinerante – nota grandes diferenças na última década. Ambos chegaram à Itinerante numa altura em que o público-alvo já era exclusivamente o das escolas.
São eles as caras que os alunos conhecem, ao leme de uma biblioteca apetrechada com cerca de três mil livros, organizados por temáticas. Mas [LER_MAIS]entretanto, às escolas do 1.º ciclo e alguns jardins de infância, juntou-se outro público: o dos Centros de Dia, Lares e outras IPSS do vasto concelho de Pombal.
“Actualmente a Biblioteca presta um serviço fundamental na promoção do livro e da leitura, não só através do empréstimo domiciliário como também dinamizando actividades de animação do livro e da leitura”, diz ao JORNAL DE LEIRIA Nelson Pedrosa, coordenador da BMP.
Nos sinais dos tempos, juntaram-se aos livros da Itinerante outros recursos electrónicos: um computador, com acesso à internet para pesquisa em catálogo, balcão de leitura e equipamento para exibição de documentos audiovisuais (LCD/ DVD).
É esse conjunto de apetrechos que chega todos os meses a 14 localidades espalhadas pelo concelho de Pombal. De modo que a Biblioteca acaba por chegar a todas as freguesias do concelho, mesmo àquelas que contam já com as suas bibliotecas.
Feitas as contas, a Biblioteca Itinerante “sai todos os meses para a rua em dois momentos: seis dias em exclusivo para o serviço de promoção do livro e da leitura, em 21 escolas do pré-escolar e 1.º ciclo, e depois cerca de dez dias para a dinamização dos projectos de animação do livro e da leitura, de acordo com as instituições inscritas e o projecto em curso”, sublinha o coordenador.
O próximo passo será levar este serviço da biblioteca às empresas locais. Mas isso só acontecerá a partir de 2020. “Era o que havia de bom, de diferente” Nas escolas por onde passa a Biblioteca há professores de todas as idades. Mas os mais velhos têm na memória os tempos em que eram meninos, como aqueles que agora ensinam.
“A biblioteca itinerante era a única coisa que nos aparecia de bom, de diferente”, recorda Lurdes Fernandes, professora há 40 anos, os últimos três na escola do Carriço na freguesia onde nasceu. É natural da aldeia de Vieirinhos, e lembra-se bem do tempo em que a carrinha da Gulbenkian aparecia. [pub-by-id pubid=’195′ f=’1′]“Foi ela que me despertou o gosto pela leitura. Até aos 20 anos usufrui sempre deste serviço”, recorda. A volta segue até à escola da Moita do Boi, na vizinha freguesia do Louriçal, antes de rumar a Vila Cã, noutra ponta do concelho.
No mesmo dia a carrinha da Itinerante liga o mar à serra, numa viagem de diversidade. Na escola básica da Moita do Boi a professora Sónia Rosa também desfia memórias da velha Citroën HY e tudo aquilo que representou para várias gerações.
Na Soutaria (Ourém), onde foi menina, já teve “a sorte de contar com uma biblioteca na escola”, mas vibra ainda hoje – tanto como os pequenos, talvez – com a chegada da Renault branca.
Quase tanto como a pequena Logan, que neste Dezembro faz sete anos, e aprende não só a ler e escrever como a falar português. Nesses sinais dos tempos, os livros ajudam-na (a ela e aos pais, britânicos a morar na vizinha aldeia de Antões) a conhecer melhor a língua. Ou como a biblioteca itinerante se reinventa, e continua a fazer sentido.
Quando a Gulbenkian levava a cultura a todo o País
É também em Pombal que mora um dos últimos responsáveis pelo serviço da Calouste Gulbenkian. Nelson Lobo Rocha esteve na Fundação 41 anos, e foi assim que conheceu a mulher, Alda Gama, então responsável pela biblioteca de Pombal, e que acompanhou várias gerações de leitores.
Natural de Mortágua, começou a trabalhar na sede, em Lisboa, em 1960. Mas como encarregado de biblioteca haveria de percorrer todo o País, dando seguimento ao projecto iniciado em Cascais, com a primeira biblioteca itinerante, por Branquinho da Fonseca, de quem guarda ainda palavras sábias: “quando o homem não procura o livro, tem que ser o livro a procurar o homem”.
“As bibliotecas itinerantes tiveram um papel muito relevante, talvez mesmo o mais importante na cultura portuguesa”, diz ao JORNAL DE LEIRIA Nelson Lobo Rocha, agora com 84 anos, sempre leitor, também poeta.
Desfia memórias do tempo em que um Portugal ainda dominado pelo analfabetismo descobria os livros, e através deles o mundo. À medida que as bibliotecas itinerantes progrediam, adensavam-se inimigos. O antigo encarregado (mais tarde coordenador do serviço) recorda, entre esses, “a igre- ja e os padres, que pregavam contra os perigos da literatura”.
Nesse tempo, Nelson dedicava muitas horas a perceber as pessoas, a aconselhar leituras, a fazer descobertas. “Havia muitos adultos que não sabiam ler, mas que entravam na biblioteca à procura de muitas coisas, às vezes de ajuda para tratar de papéis, de burocracias.
E nós ajudávamos muito na vida des- sas pessoas”. “Foi através das Bibliotecas Itinerantes que houve uma revolução cultural em Portugal”, acredita, ele que ainda hoje está certo de que foi a Fundação Gulbenkian “que fez pelo povo aquilo que Governo nenhum conseguiu fazer”.
Além disso, há ainda outro papel que merece destaque: “tenho muitos amigos que hoje são médicos, advogados, que só conseguiram fazer os cursos graças às bolsas de estudo da Fundação. E só lá chegaram através das Bibliotecas Itinerantes. Era assim também que conseguiam ter acesso aos livros, que eram muito caros”.
Para sempre ficam as memórias daqueles com quem trabalhou: Sophia de Melo Breyner, Natália Correia, Mário Braga ou David Mourão Ferreira.
Mas foi o último quem mais o marcou. “Era um homem extraordinário”.