É exagero dizer que a música mudou o seu modo de vida?
Estar na estrada e viver para a música, não só da música mas para ela, condicionou a forma como me relaciono com as pessoas, a forma como me visto, condicionou a minha vida de um jeito muito profundo.
Trouxe coisas boas?
Ruins e boas. As boas, estou aqui por causa da música. Cresci muito a nível pessoal por causa da música, vi coisas, conheci pessoas, experimentei sensações, sentimentos, só por causa da música, que sem a música não teria vivido. As ruins, depois de muito tempo fora, depois de muito tempo viajando, ninguém te espera em lugar nenhum. E, quando me liguei que isso acontece, que isso acontecia, foi pesado, é pesado, é profundo. Ninguém te espera para aniversários, por exemplo. Os meus pais não esperavam, porque eu podia estar lá alguns meses, mas já estava planeando outras idas para não sei onde. Viagem na América do Sul, viagem no Brasil. Fiquei sete anos nesse ritmo. Saía de casa em Janeiro, ou depois do Carnaval, e voltava no Natal. Às vezes voltava, mas se ficava em casa por duas semanas, já era muito.
Quantos países?
Para aí uns 15, 20, desde 2011. Antes da pandemia, cheguei a estar três, quatro meses viajando.
Apátrida, sem casa.
Sim, totalmente. Tanto que chegar em Leiria e ser abraçada pela comunidade toda daqui, tanto artística como de amigos que fiz, é uma coisa que… é minha casa, me sinto em casa, mas ainda me sinto nesse processo de aterrar, sabe? Foi tanto tempo sem, que ainda me sinto chegando, de alguma forma. Mas é o lugar que escolhi e não consigo pensar noutro lugar melhor.
E porquê Leiria?
Por causa da Omnichord, em primeiro lugar. E pelas pessoas que estão aqui e por me identificar muito com a forma como trabalhamos. Houve uma sinergia, uma química de pensamento, de como enxergar o mercado da música, de pensamento artístico, também, de liberdade, de autonomia, de vamos fazer e vamos juntos. A coisa de estar na estrada sozinha por tanto tempo aconteceu porque não achei gente que estava querendo a mesma coisa que eu. Então, fiz um concerto sozinha e comecei a viajar sozinha. Quando me deparei com isso daqui acontecendo, em Leiria, em 2016, que era só a Casota, não era nada mais, identifiquei-me totalmente, porque eles estavam vivendo para aquilo. Era a coisa que eu estava fazendo também. Depois conheci o Hugo [Ferreira], a Débora [Surma], ficámos super-próximos. E, no fim, Leiria é isso: o lugar e as condições para eu viver o amor à música.
Tem relação com a cidade?
Tenho, tenho. Eu amo. Moro bem no centro, acho incrível, acho romântica, adoro a relação com o rio, como as pessoas daqui se localizam através do curso dele, adoro ver como a comunidade jovem começa a se despertar e tem essa sede muito grande pela cultura, gosto muito.
Esse circuito pode tornar-se solitário?
O momento em que entendi que já estava chegando no limite foi em 2019, por aí. Tinha lançado já o segundo álbum, tinha mil coisas para fazer aqui, fiquei um mês e meio nos Estados Unidos rodando, e aí sim, senti que estava chegando no limite. Foi exactamente no momento em que entendi que ninguém me esperava. Muitos anos fora de casa, o que isso tira da gente, o que a gente abdica de vida em termos de afecto, também. Aí ansiedade, aí tudo vem junto, sabe? Comecei a sentir que não podia continuar do jeito que estava. Nós somos seres humanos, precisamos de rotina para entrar em um equilíbrio mínimo, precisamos de afecto.
Mas também tem coisas boas.
Claro que sim. Acho que a melhor mesmo, é poder ouvir as pessoas. Acho que entendi o real significado de gentileza e empatia. Precisei muito de ajuda, encontrei essa ajuda, depois precisaram da minha ajuda e eu pude dar também. É quando você está mais vulnerável. Você não está em casa, você não tem uma base. Então, você precisa contar com as pessoas que vai encontrar pela frente.
Isso transforma, dá outras competências?
A resiliência, eu acho. No início da pandemia, fiquei três meses em Itália. Tinha ido lá pegar uns documentos, porque tenho cidadania italiana, e, de repente, tudo fechou. Meu voo foi sendo cancelado, no fim foi cancelado mais de 15 vezes, e eu fiquei lá por esses três meses. Uma situação extremamente vulnerável, em que se eu não tivesse amigos, criados nesse monte de anos na estrada, provavelmente, eu não teria arrumado um lugar para ficar em Roma, no pior país da pandemia, naquele momento, no mundo. E também a bagagem emocional para lidar com um momento daqueles, que foi extremamente forte. Era ser extremamente racional e usar essa bagagem de ter estado na estrada por tanto tempo.
O que é que a música faz por si?
A minha vida não tem nenhum sentido sem música. Não consigo me ver fazendo coisas que não estejam relacionadas com a música. Já pensei muito sobre isso, porque, ao longo dos anos a música vem sendo cada vez mais importante, cada dia. Já foi a minha forma de terapia, minha comigo, já foi a forma em que eu comunico com as pessoas, já foi instrumento de cura, já foi festa, já foi dor, então, é muita vida e é muito vasta a quantidade de possibilidades que a gente tem de tirar dali. E dar para a música, também, porque é um ciclo, é tudo um ciclo, eu sinto.
O que é que acontece em palco que agrada tanto?
A troca com as pessoas e sentir a disposição delas, sentir que elas estão ali comigo dispostas a ir aonde eu puder levá-las. Quando era mais nova, era desse lado um pouco mais egóico: vou mostrar isso aqui para vocês, porque estou com orgulho disso, acho que está lindo. Agora, precisa fazer sentido para mim e para o público também, sabe? Se o público se dispôs a pagar bilhete para me ver, muito obrigada, eu espero fazer sentir bem com o que tenho para mostrar, de um jeito muito sincero. A partir desse lugar de estar grata, mesmo.
A música mudou-a como pessoa?
Acho que a música me impulsionou de jeitos mais profundos. Para além de rápido e mais intenso, muito real. De precisar lidar com aquilo. Por exemplo, assuntos de sexualidade ou identidade de género. Estar só com a música na estrada me faz encarar tudo de maneira diferente. Sabe um sacozinho de plástico, quando bate o vento, ele está por aí? É isso. Dá liberdade para você ser o que você quiser redesenhar. A minha vida em Portugal, essa página aqui, também me inspira muito por isso. Porque acho que consigo aqui mostrar o que sou, o que tenho orgulho de ser, que foi também a música que me moldou.
Ser artista ajudou-a a lidar com essas questões essenciais da personalidade?
Com certeza. Justamente, por me apresentar uma liberdade e me apresentar coragem. É tudo possível, só preciso de força.
Em relação à sexualidade, havia medo?
Nunca tive medo. Sinto que saí de três armários, já, nessa vida, que foram assumir que eu ficava com mulheres, num segundo momento assumir que ficava com pessoas, ou seja, pansexual, e agora estou me entendendo saindo de um terceiro armário que é me assumir uma pessoa não-binária, que tem que ver com a identidade de género. Então, sim, a música e a condição da minha vida me deram coragem para poder lidar com coisas que eu estava deixando para depois. Em relação à identidade de género, a música foi me moldando e me abrindo possibilidades, não só a música, mas a arte em geral e artistas que eu acompanhava e admirava.
Como é que se vê como pessoa, hoje?
Em geral, o ser humano define sua identidade em quatro pilares: sexo biológico, sexualidade, identidade de género e expressão de género. É tudo muito novo, termos novos, estudos novos, mas se olhamos para a história da humanidade, isso tudo esteve aqui desde sempre, só agora é que estamos dando nomes e abraçando mais as pessoas que dão esse passo adiante e se enchem de coragem para ser o que realmente sentem que são. Então, temos a caixa masculina e a caixa feminina, o não-binário é basicamente escolher uma não caixa e é não me identificar com nenhuma dessas duas, não querer ou ver sentido em ter que escolher entre esses dois géneros. Ser um híbrido dessas duas e escolher estar fora dessas caixas, se sentir não-binário. As etiquetas, culturalmente, elas trazem cargas muito dolorosas e difíceis e passamos a vida tentando nos encaixar ali porque foi o que nos apresentaram como opções, para sermos aceites. E, na verdade, tem que ver com o que eu sinto, para além do todo cultural em redor. O que primeiro me influencia é, de facto, como me sinto. Quando me dizem que é isso e é isso, estou em algum lugar entre, sabe? E se precisa de existir uma etiqueta para isso, que se chama não-binário, tudo bem, existe uma etiqueta para não-etiqueta.
Que impacto provocou, à sua volta?
É muito interessante, muito profundo, porque nunca me senti tão bem. Nos últimos meses, em que entendi que é isso, principalmente, em termos de expressão de género e de identidade, acho que fiquei mais centrada, mais serena, mais calma. Não provocou nada de ruim.
Assumir-se como pansexual e não-binária trouxe-lhe felicidade.
Totalmente.
O que espera que a música e a arte ainda lhe possam trazer?
Gosto de me provocar, gosto de desafios. Também tem esse outro lado, aonde quero chegar, um trabalho cada vez mais conciso em termos da minha identidade. E pensar nela numa linha evolutiva, no lugar que estou chegando agora. Traduzir como me sinto, da carga de todos esses anos viajando, de entender esses três armários, organizar isso de um jeito coeso no que vai ser a próxima cena que vou fazer. O meu comprometimento é com organizar essa identidade e ao mesmo tempo ter essa aba onde me provoco, onde saio da minha zona de conforto.