Numa entrevista à revista Shifter, disse que a arte não faz sentido se não possuir uma lógica comunitária…
Disse que, para mim, não faz. É a minha forma de trabalhar. É o cuidar do outro, do olhar para o outro, sou, talvez, a antítese de um artista no sentido mais clássico do ego que tem de ser alimentado e que se foca “naquilo que eu penso, o que eu faço, o que eu quero fazer, a minha ideia, o meu conceito”. Quando estou a desenhar um projecto, imagino sempre como vai ter impacto na vida de alguém, naquela rua, naquela cidade, naquela comunidade com quem estou a trabalhar. Quando envolvemos a comunidade na construção de algo, e, por vezes, as pessoas nem sequer percebem que estão a ser envolvidas, há um sentido colectivo. Por exemplo, no festival de arte urbana Fazunchar, em Figueiró dos Vinhos, aquilo que perdura no espaço e no tempo são os murais. É um património comum que deixa de ser do artista e passa a ser da comunidade e território. Há 12 anos, quando comecei a trabalhar na área, isto era uma suspeita e uma intenção que eu tinha. Hoje, foi claramente confirmado. Por exemplo, no ano passado na edição do festival Wool, na Covilhã, tivemos de renovar duas paredes com murais e houve contestação, porque “as paredes eram da comunidade e vocês não podiam limpar e mudá-las sem nos pedir e sem nos avisar”. Apesar da contestação foi positivo. Seria estranho, não haver reacções, o que indicaria que o trabalho que queríamos que as pessoas assumissem como seu não estava a resultar. Não digo que 100% daquilo que fazemos tenha este carácter, porque também fazemos muito trabalho relacionado com marcas. Apesar de considerar que projectos, como o Fazunchar ou o Wool, são marcas territoriais.
As residências artísticas em Figueiró dos Vinhos fazem lembrar os tempos passados, quando Malhoa trazia os amigos e o Grupo do Leão para pintar, inspirar-se e descansar. O Fazunchar faz reviver esse tempo?
Apesar de aqui, em Figueiró, tudo é uma grande residência. Até a execução dos murais. Os artistas estão aqui a criar e, outras vezes, já trazem coisas que necessitam de ser complementadas e, para isso, tem de haver uma leitura do território. No Fazunchar, este ano, somos 16, é uma equipa menor, mas almoçamos juntos, jantamos juntos e acaba por ser uma irmandade que se forma e que permite feedback dos artistas. Vivemos aqui em comunidade e cada um trabalha na sua área. Ainda ontem, ao jantar ficámos à conversa, e eles diziam que estavam a adorar. A Giuliane Sampaio, especialista em lettering, dizia estar a adorar perceber o processo da Ana Lua Caiano, que faz recolha de sons… eles contaminam-se uns aos outros. Os dois dias iniciais no Fazunchar são de reconhecimento do território e da comunidade que está aqui dentro e de muitas outras coisas, como a história de Malhoa, do Grupo do Leão e o reconhecimento do trabalho que já foi feito. Começamos por falar da história, fazemos uma visita pela vila, falo do Simões de Almeida tio, que foi o responsável por trazer Malhoa para Figueiró, falo do sobrinho, que é um dos maiores escultores portugueses, responsável pela escultura da República, que está no parlamento. Vamos às fragas, vamos passear, vamos a banhos, e tudo isto é, não só um reconhecimento do território, mas um compromisso informal que eles firmam. Quando damos a conhecer o território aos artistas, a sua responsabilidade e compromisso com o território é muito maior, porque conhecem as pessoas para quem estão a trabalhar, e começam a reconhecer as ruas, a história, e sabem que também têm aqui um papel importante. A responsabilidade com que fazem, durante o Fazunchar, o seu trabalho é completamente diferente da que seria se fosse um festival onde chegassem, fizessem e fossem embora. Vamos na 5.ª edição, e quem esteve connosco na 1.ª, na 2.ª, na 3.ª e na 4.ª, diz-nos que tem um carinho especial por Figueiró dos Vinhos, e isto vem de ser uma grande residência, numa vila cuja escala permite que andemos a pé de um lado para o outro e que estejamos em casa.
Os habitantes param para ver os artistas trabalhar?
Isso nota-se mais nas aldeias das três freguesias do concelho. São localidades onde acontece muito pouco. Quando ali, durante uma semana, acontecem estas “performances de longa duração”, as pessoas participam. A Daniela Guerreiro está a pintar uma intervenção num edifício que foi lagar de azeite em Arega. Ao lado há um café onde, ao final do dia, os senhores da aldeia vão ali comer um pica-pau e convidam-na para se juntar a eles. Quando ela precisa de alguma coisa, vão imediatamente ajudar. Há aqui uma entreajuda muito grande. A Giuliane Sampaio está a pintar a parede da casa do senhor Joaquim, que tem 77 anos, e ofereceu-se para ela usar a casa de banho, para arrumar os materiais, e está todo o dia em frente à parede dela, sentado no seu banquinho, a vê-la trabalhar. As pessoas percebem que os artistas estão a fazer algo que se identifica com o território e que cria sentimento de pertença… muitas vezes, não valorizamos o que é nosso, e este trabalho ajuda a fazê-lo. Recordo-me que, quando começámos aqui a trabalhar e sugerimos Fazunchar para nome do festival, expressão que significa “fazer”, no laínte, o dialecto local, disseram-nos “foram pegar nisso? Já não tem interesse nenhum. As pessoas nem se lembram que existe o laínte”. Mas pegou imediatamente, e, de repente, toda a gente tinha um tio, um primo, um avô que sabia falar laínte. Já não há muita gente a falá-lo. Este ano, temos a Giuliane a trabalhar sobre o dialecto e ela está em Fontão Fundeiro, no local onde ele nasceu. O senhor Joaquim fala laínte, e já ontem o foram filmar e a Ana Lua Caiano foi fazer uma recolha de som. Os próprios naturais daqui já não o sabem falar muito bem, mas vão-se lembrando de algumas frases.
De que maneira a vila beneficiou com a arte urbana?
Há pessoas que tiram férias para virem ao Fazunchar. Vêm quatro ou cinco dias e acompanham o desenvolvimento e a criação dos murais, além de todas as actividades no segundo fim-de-semana. Ainda ontem, nos workshops, tivemos pessoas de fora, que aproveitaram para passear o resto do dia. Foram às fragas para um mergulho. Nas visitas guiadas do último fim-de-semana, diria que 80% são de fora e vêm de propósito. A colocação das peças artísticas é pensada para permitir um percurso pela vila. Há ainda a rota dos fregueses, visita guiada ao sábado, onde vamos a todas as freguesias ver o que já está feito, e há muita gente que se inscreve, porque é a possibilidade de irmos em autocarro, a falar, e eu vou mostrandoas peças. Já me aconteceu, estar em Lisboa, numa entrevista ou reunião e começam a falar-me do Fazunchar e as pessoas nem sequer sabem que somos nós que o organizamos. Podem ainda não ter vindo de cá, mas conhecem pelas redes sociais e vão seguindo o trabalho, acabando por vir cá.
Termina tudo com um grande piquenique comunitário?
Exactamente. Foi uma tradição que percebemos que existia, porque há uma senhora, a Margarida Lucas, que tem um espólio incrível de fotografia, e, na primeira edição, fizemos uma exposição sobre memória fotográfica. Foi num espaço, acerca do qual há um mito de uma ameaça de bomba que teria obrigado ao seu fecho e nunca mais ninguém lá entrou. Na verdade, o senhor fartou-se da loja, fechou-a e deixou tudo como estava. Passados 30 ou 40 anos voltámos a abrir o edifício, pusemos as fotografias em cima das mesas de corte de tecido e criámos logo uma ligação directa com a comunidade. Foi muito curioso, pois identificámos dezenas e dezenas de fotografias de piqueniques. Existia uma tradição de fazer piqueniques na vila e foi o que nos levou a acabar o festival com um, juntando muita gente de Figueiró dos Vinhos.
A Lata 65, iniciativa que envolve os idosos, num território que está a ficar despovoado, faz com que elas voltem um pouco à infância, dando largas à criatividade?
Nem é uma questão de voltar à infância. A Lata 65 faz sentido em todo o sítio. Apresentámo-la na primeira edição porque queríamos mostrar que queremos trabalhar com toda a comunidade. É um cliché, mas muita gente acha que a arte urbana é só para jovens. É totalmente errado. O nosso público é a partir dos 30 anos. Eu queria mostrar, logo desde a primeira edição, que queremos trabalhar com todas as idades e que é possível fazê-lo. A Lata 65 já não tem muito mais para provar, sabemos que funciona, foi uma forma de envolvermos não só instituições do concelho, mas também pessoas idosas que se inscreveram directamente. Quem participa deixa a sua marca, torna-se visível, e é uma forma de se desafiarem e de provarem que conseguem aprender algo novo, aos 70 ou 80 anos. O trabalho fica exposto e visível, ao contrário de outras actividades para idosos, que ficam escondidas num cantinho. No Lata 65, podem escrever e desenhar o que quiserem e nós colocamos na rua e tornamos visível. Em Portugal, são urgentes este tipo de iniciativas, e não falo só do Lata 65. Somos o país que está a envelhecer mais rapidamente na Europa e, dentro de poucos anos, seremos o terceiro mais envelhecido do mundo. Assusta-me a minha terceira idade, mas assusta-me muito aquilo que vejo acontecer, pois continua limitada a atenção dada ao idoso, especialmente em tudo o que vá além das respostas básicas. A actividade cognitiva dos idosos tem de ser estimulada. É por isso que não gosto de dizer que o Lata 65 faz voltar à meninice, porque a verdade é que ela nunca se deveria perder. Tive pessoas que nunca desenharam, nem em crianças. Começaram a trabalhar no campo aos 6 anos e, quando peço que façam um desenho como quando eram pequeninos, respondem: “nunca fiz”. Nunca houve tempo. Nunca tiveram essa possibilidade. Esse luxo. É mais fácil perguntar o que faziam quando trabalhavam. O Lata 65 tem obrigado a uma procura constante de formas de financiamento. Já perdi a conta o número de entidades que nos perguntam qual o orçamento – e o orçamento é um terço de uma oficina para crianças e dizem-me que é muito caro. É, novamente, esta coisa do “não se gasta dinheiro no idoso. Já viveu o que tinha a viver, e não vamos gastar mais dinheiro nele”. Em Abril deste ano, decidi enviar um pedido de reconhecimento do Lata 65 como projecto de interesse cultural. Foi aceite. Foram dois meses… foi rápido porque a pessoa que avalia os pedidos demonstrou interesse e conseguiu avançar logo o processo.
O que falta à lei do mecenato para realmente funcionar?
A lei do mecenato, neste momento, está bastante melhor, mas demora muito tempo. Por exemplo, pedi para o Wool – Festival de Arte Urbana da Covilhã, reconhecimento do interesse cultural… E a edição deste ano já aconteceu e ainda não tivemos resposta. A lei está melhor, porque agora as empresas podem propor projectos para ser reconhecido esse interesse. Antigamente, só as associações ou entidades públicas é que o podiam fazer. Como em tudo no Ministério da Cultura, DGArtes e afins, há muito pouca gente a trabalhar, e os processos arrastam-se. O que vai demorar mais tempo a mudar, e é o problema da cultura e das artes em Portugal, é o mecenato ter de ser apoiado por uma empresa ou um particular, que tem de sentir que é uma mais-valia apoiar a actividade cultural ou artística. E isso não acontece no nosso País. O interesse da sociedade portuguesa pela cultura e pelas artes é muito reduzido. Não é só o empresário, a visão do público sobre a cultura e a arte não lhe permite ver interesse em apoiar, excepto na música. A música é uma coisa que está à parte no nosso País, daí a quantidade de festivais de música que existem. Para isso, existe sempre dinheiro. A música e festas valorizam-se, mas a cultura e arte já não têm valor. É esta visão que tem de mudar. Quando cá veio o Lula, trouxe uma comitiva e pediram para receber um grupo de empresários das indústrias criativas de Brasília. Vieram 18 pessoas a quem falámos um bocadinho do trabalho que desenvolvemos. E eu falei, falei e eles perguntaram se, aqui, o mecenato, funciona bem, porque lá só fazem festivais e o apoio é a 100%. E eu expliquei que não funciona. Perguntaram quanto é o retorno para o empresário aqui. Eu disse 130% e a resposta foi: “como 130%? Vocês têm mais 30%. No Brasil é 100%. Dá-se 100, recebe-se 100. Aqui em Portugal, dá-se 100 e recebe-se 130?” Os mecenas, em Portugal, têm um ganho de 30%, em sede de impostos, mas não apoiam. É por isso que digo que falta o principal. As pessoas têm de valorizar a cultura e a arte. A maior parte dos mecenas apoia os grandes festivais e os museus nacionais, onde têm mais visibilidade, mas, há muitos outros projectos que precisam de mecenas. Estamos um bocadinho melhor agora, porque temos um ministro da Cultura com um peso no Governo, que nenhum outro teve. Tem feito muito, só que ainda falta muita coisa e a principal é demonstrar que a cultura é essencial à vida, é essencial a um país, sob pena de não ter futuro e desaparecer. Passa a ser uma espécie de extensão de outros países e de outras culturas, que é um bocadinho o que está a acontecer em Lisboa.
Desenhei, projectei e sonhei muito Nasceu na Covilhã, onde estudou até seguir para Lisboa o curso em Arquitectura. Lara Seixo Rodrigues, 44 anos, recorda que foi uma escolha difícil, pois até aí, considerava seguir um percurso profissional que envolvesse ser “cabeleireira ou a tropa”.
“Os meus pais disseram logo ‘nem penses! Vais tirar um curso superior primeiro.’ Depois arrependeram-se, porque arquitectura, não é uma saída ou profissão fácil. Mas não me posso lamentar, porque desenhei, projectei e sonhei muito, ao contrário de muitos colegas.”
A fundadora da plataforma Mistaker Maker explica que os desafios da vida levaram à necessidade de cuidar e de melhorar a vida do outro.
“O cabeleireiro vem daí. Há projectos de barbeiros que cortam gratuitamente a barba e o cabelo aos sem-abrigo. Com uma transformação do visual podemos sentir-nos um bocadinho melhor e espoletar uma transformação interior. O cabelo é uma coisa manual e artística, tal como a minha relação com a arquitectura, onde penso os espaços para promoverem qualidade de vida. A criação em espaço público, também tem que ver com o ser e estar, como missão pessoal.”