Tem 31 anos e acaba de lançar a primeira longa-metragem de ficção, Baan, mas já desde a estreia como realizadora, em 2016, que é um nome a ter em conta no panorama nacional.
Com Balada de um Batráquio, Leonor Teles conquistou o galardão para melhor curta-metragem na Berlinale, um dos mais importantes festivais do mundo, feito suficiente para muitos a considerarem a menina de ouro do cinema português, mas dois anos depois, em 2018, com a primeira longa, o documentário Terra Franca, juntou ao currículo o prémio SCAM do Cinéma du Réel. Seguiu-se a curta Cães que Ladram aos Pássaros (2019), que teve estreia mundial na secção Orizzonti do Festival de Veneza e foi nomeada para os European Film Awards. No mês de Fevereiro, Baan (já premiado na Islândia e nos Caminhos do Cinema Português) estreou-se no circuito comercial.
Leonor Teles trabalha também como directora de fotografia e colaborou com João Canijo em Mal Viver (2023), Urso de Prata em Berlim.
Baan, que significa casa. Que história é contada neste filme e porque a quis contar?
Temos esta personagem, que é a L, e ela anda meio perdida da vida, e à procura de um rumo, e acaba por encontrar outra personagem, a K, que também ela anda sem rumo, e é quase como se as duas andassem à procura de casa, seja lá o que isso for.
Casa, no sentido físico ou emocional.
Não é só no sentido físico, é mais até no sentido emocional de qual é o lugar de pertença, de onde é que nós somos ou aonde é que pertencemos, ou, de certa maneira, a procura do sentimento de lar.
É um lugar que pode ser encontrado bastante longe das origens?
Acho que sim. Para algumas pessoas esse sítio é a terra natal, ou simplesmente a sua casa física com as paredes, e para outras pode ser muito mais um sítio longínquo ou uma descoberta ou uma viagem ou até mesmo um encontro com outra pessoa que a faça sentir-se em casa. Há sempre uma série de variáveis que são individuais. Cada pessoa tem a sua noção de casa e, se calhar, às vezes é preciso ter de sair para perceber que é a sua própria casa, que tem de se valer a ela mesma para estar bem.
A perda é o tema que está em primeiro plano? Ou é a sobrevivência?
É a perda da casa que motiva a procura e esta ideia de sobrevivência, mas um está dependente do outro. O filme não é só sobre a perda, é também [sobre] como reagir à perda e como voltar a respirar.
Na actualidade, é mais fácil alguém sentir-se sem casa, física ou emocional, sentir-se sem chão?
Infelizmente, têm sido as duas coisas. Com todo o processo de gentrificação de que as cidades estão a ser alvo, tem acontecido frequentemente.
Mais do que antes?
Sim. No caso do filme, que é muito mais sobre casa no sentido emocional, é uma preocupação que atinge a minha geração, perceber qual é que é o propósito ou o que é que estou aqui a fazer.
A maneira como a geração encara a vida é diferente das gerações anteriores?
Da dos meus pais, sim, sobretudo porque as pessoas vão progredindo, vão ficando mais velhas, mas a instabilidade continua. Chegam a uma certa idade e ainda estão a partilhar casa, não conseguem ter uma família, têm um trabalho precário, estão a ser expulsas, o serviço nacional de saúde também tem muitas dificuldades, ou seja, tudo aquilo que se calhar para os meus pais estava garantido, e que eles têm como estável, para a minha geração aquilo que é o normal é a instabilidade.
Interessa-lhe a intervenção através do cinema, social ou política?
O cinema não tem só unicamente que nos entreter, pode fazê-lo – e este filme faz isso, atenção – mas também pode pôr-nos a pensar, nem que seja reflectir dois minutos sobre um determinado assunto. E quando conseguimos fazer as duas coisas, porque não?
A instabilidade que a geração sente está mais ligada aos aspectos materiais?
Também tem a ver com os aspectos emocionais, das relações, se calhar, a relação com as novas tecnologias alterou essa maneira de nos relacionarmos uns com os outros e de nos sentirmos isolados e desligados uns dos outros, acho que é um reflexo dos tempos de hoje, ou seja, não tem só a ver com o aspecto material, mas com as relações, com os nossos amigos, com a nossa família, namorados, namoradas, etc.
Também tem a ver com construir novos modelos de relacionamento? Ou vivê-los?
Andamos um bocadinho todos à deriva, acho que sim, é um desafio para os jovens, hoje em dia.
As cidades tornaram-se menos amistosas, mais agressivas?
Muito. Lisboa está um caos. Eu quis filmar o sítio onde vivo e as ruas onde habito, o espaço que, de certa maneira, é o meu espaço na cidade. Claro que esse espaço é sempre partilhado com outras vivências e também tentei trazer essas diferentes vivências no mesmo espaço para o filme. É a minha reflexão sobre a cidade onde habito.
A Lisboa que conheceu já não existe?
Existe, mas está diferente. Há coisas que são melhores, mas há muitas outras coisas que estão completamente a fugir ao controlo de toda a gente e que estão a tornar a cidade inabitável. O aumento brutal das rendas, o crescendo do racismo. É uma coisa que eu há uns anos não sentia tão na cara, era mais dissimulado. A questão aqui não é tanto o turismo ou as pessoas que vêm de fora, é mais o Governo não actuar para proteger as pessoas que vivem e habitam a cidade. Se quiserem tornar Lisboa numa cidade igual às outras, estão a seguir esse caminho, se querem manter Lisboa com aquilo que era a sua beleza, a sua magia, não o estão a fazer, não está a acontecer. O Estado tem de tomar medidas que protejam os habitantes e permitam fazer um turismo sustentável. Claro que o turismo teve pontos positivos. Havia toda uma parte da cidade de Lisboa que estava a cair de podre e foram também os investimentos no turismo que permitiram a requalificação dos espaços, mas é sempre uma questão de equilíbrio e [de] não inflacionar as coisas com o objectivo de capitalizar ao máximo. Eu fui expulsa da minha casa quando estava a filmar este filme. Tive de sair, durante a rodagem. Foi algo que não influenciou o filme, só me influenciou a mim, emocionalmente. Não mudou o guião. Mas foi irónico. Estou a fazer um filme que se chama Baan, que significa casa em português, e de repente fico eu também sem casa.
A crise da habitação tem efeitos que não são só contas de somar e de subtrair.
Obviamente, gera desespero, no quotidiano das pessoas. Não haver segurança em relação à casa gera situações muito desconfortáveis e muito desesperantes. Aliás, o Cães que Ladram aos Pássaros [curta de Leonor Teles, de 2019] é exactamente sobre isso, é sobre o que é que gera emocionalmente uma situação destas.
No filme [Baan] há um cruzamento entre Lisboa e Bangecoque. Pode ser lido como uma perspectiva sobre a globalização e o fenómeno migratório?
Sim, a ideia é perceber que todos nós vivemos em cidades que têm imensas culturas, e que já estão tão mescladas, e que as pessoas já fazem parte do tecido urbano. Sempre vi Ásia em Lisboa e quando estive na Ásia havia sempre coisas que me pareciam Lisboa, senti sempre familiaridade entre os sítios e fusão de culturas. E senti que neste filme era algo que eu também devia trazer. No mundo em que vivemos tanto estamos aqui como a seguir estamos noutro lado qualquer.
O filme pretende expor questões relacionadas com racismo e xenofobia?
Isso existe também de um ponto de vista daquilo que é a experiência de uma pessoa na cidade. Eu vivo na minha bolha, estou com aquelas pessoas, relaciono-me com aquelas pessoas, mas ao meu lado estão outras pessoas que se vão atravessando no meu caminho e eu no caminho delas. E, se calhar, a partir do momento em que me cruzo com essas pessoas, tenho acesso a outros mundos, e a outras bolhas – e vejo isso como algo positivo, sem dúvida. Toda esta curiosidade em querer conhecer algo que é diferente de mim é sempre positiva porque enriquece a minha experiência no mundo e muda também a minha perspectiva, e o meu ponto de vista, faz com que eu esteja atenta a coisas que antes não conhecia. É mesmo muito potente, esta coisa de como um encontro com alguém nos dá a conhecer outros espaços dentro de um sítio que eu se calhar já achava que conhecia relativamente bem.
Os temas do ódio, da intolerância, estão mais vocais hoje?
Sem dúvida. Assistiu-se a uma escalada da extrema-direita na Europa (não é um fenómeno exclusivamente português) que também apela a uma espécie de populismo que não é nada saudável. E normaliza-se esse ódio e essa intolerância que têm a ver com coisas que muitas vezes são infundadas e que provêm, simplesmente, de um lugar de desconhecimento, e de falta de interesse e de falta de respeito.
Como é que olha para a situação do cinema, do ponto de vista da criação e da indústria, em Portugal?
A nível da criação, felizmente, nos últimos anos têm existido muito mais oportunidades, tem-se criado muito mais e o cinema tornou-se uma coisa mais democrática e mais acessível a pessoas de diferentes classes sociais para jovens criadores. Aumentou, o número, e isso é bom, é positivo.
E a qualidade também?
Acho que sim. O cinema tem esse espaço de “tudo é possível”, tal como outras artes. Obviamente, é sempre bom continuarmos a lutar e a relembrar o quão importantes são os financiamentos e os subsídios públicos para a criação cinematográfica. O que tem sido mais complicado é depois a estreia comercial. As pessoas não vão ao cinema. Tem-se tentado distribuir os filmes e pô-los disponíveis nas salas, o grande desafio é como levar as pessoas ao cinema, como fazê-las ir ao cinema. É mesmo o grande desafio: não deixar a sala de cinema morrer enquanto espaço de exibição cinematográfica.
E é algo que prejudica mais o cinema português?
Sim, se as pessoas não vão ver filmes, um português ainda menos.
Ainda há esse preconceito?
Acho que sim. E é difícil combatê-lo. Embora os filmes portugueses que se fazem actualmente não tenham nada a ver com essa ideia preconcebida do que o cinema português é. Portanto, as pessoas têm de dar uma oportunidade ao novo cinema português.