De seu nome completo Maria Teresa de Mascarenhas Horta Barros, a grande escritora, jornalista, ativista e poetisa portuguesa, nasceu em Lisboa em 1937 e morreu a 4 de fevereiro deste ano. Conhecido que é todo o processo ligado a Novas Cartas Portuguesas, em coautoria com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, que seria julgado em 1972, torna-se quase impossível não ler a produção literária de Maria Teresa Horta (ou qualquer uma das outras duas Marias…) com o peso da ideologia defendida. No entanto, gostaria de ler a sua coletânea de contos Meninas, publicado pela primeira vez em 2014, não como um resultado de ideologia ou ‘arte panfletária’, mas como inscrição ética no mundo, repleto de fragilidades.
O livro encontra-se dividido em duas grandes partes, sendo a Iª constituída por 17 contos, cujas protagonistas são sempre crianças que, de uma forma ou de outra, sofreram abandono afetivo; a IIª contém 15 contos, e 1 poema, e o registo altera-se sensivelmente já que os contos se assemelham a esboços de novelas ou janelas para novas narrativas maiores, e as protagonistas são elas e o seu passado, desde a infância. De facto, o primeiro conto, “Lilith”, passa-se ainda no ambiente paradisíaco do ventre materno e o último, “Estrela”, termina com o suicídio da protagonista, vítima de abuso sexual paterno, no rio antes de desaguar no mar. Da vida à morte, todas estas meninas são apresentadas numa gritante solidão, e o elemento aquático acaba por ser o símbolo da origem e do final de tudo, abafando os gritos que as personagens sentem nem sequer lhes ser permitidos. Daí a brevidade das narrativas, feitas de subentendidos e de alusões que o leitor é convidado a desvelar, mas não queixas abertas: melancolia, dor e monstruosidade do mundo que continua a ecoar no processo de um mundo livre. Ou de como a liberdade ideológica nem sempre é capaz de ouvir e ver, sentir, adivinhar, os pedidos de auxílio que emanam do silêncio das meninas. Por isso entendo o poema “Meninas”, com que termina a IIª parte, como uma intromissão do sujeito poético, a sublinhar na adversativa final como é no feminino, de filha para mãe e de mãe para filha, que continuam a falar as injustiças do mundo que a liberdade por si só não resolve:
“Quando as meninas / fitam o nada / de olhos vagos // Uma brisa cruel / vacila e sussurra / no seu peito // Estão a ver um anjo / – imagino // Mas as mães / desesperam” (p. 301)
Considerem-se, então, as diversas negações da felicidade das meninas: Lilith e o abandono primordial do nascimento; Daninha e a fuga pela arte da palavra, dádiva que a afasta da mesquinhez e inveja dos outros; Recém-nascida, a bebé a quem a mãe abandona emocionalmente; Desobediência, a Lucinha de dois anos que começa a compreender as falhas do mundo adulto, reagindo às proibições; A Ilha, onde a criança apenas se pode limitar a ver, sem seguir, a procissão; Ondas, em que Matilde é salva (mas de quê ou de quem?) de um incidente na travessia para a ilha do Pico; Abismo, em que Beatriz sofre a violenta desatenção da mãe; Efémera, em que a menina se apercebe e sofre com a disfuncionalidade da relação entre os pais; Lápis-lazúli, a perceção dolorosa da menina que é objeto no meio da separação afetiva dos pais; A Espia, com a menina a ser voyeur das cenas de amor dos pais; Calor, com Mónica a sentir-se um empecilho na vida da mãe; Raquel, a secar com o abandono da mãe e o desamor violento; Eclipse, com Laura a mimetizar em si mesma a fuga da mãe; Perecível, em que a diferença da mística Teresinha é motivo de exclusão; Azul-da-China, com o episódio do furar das orelhas a Sara; Branca de Neve, e a relação de ódio com a madrasta; Azul-Cobalto, em que a menina antevê a fuga da mãe e se recrimina por não a ter morto. Efetivamente, estas 17 personagens, podem definir-se como uma única, em vários momentos da sua existência.
A diferença com a IIª parte, é que a maioria das personagens reflete já o intertexto de obras lidas e escritas por Maria Teresa Horta, e as narrativas são um esquisso de algo mais complexo. Porém, sempre sem resolução possível: não há abertura possível nos finais fechados em que só o alheamento em si mesmas pode dar às meninas uma luz ao fundo do túnel. Sozinhas, as meninas sofrem a monstruosa fragilidade do mundo.