Nascido em Lisboa (1969), o compositor de música erudita, professor e investigador Luís Tinoco é filho do arquitecto, músico e artista plástico José Luís Tinoco (natural de Leiria) e neto de Maria Carlota Tinoco (que foi pianista e professora no Orfeão de Leiria) e Agostinho Tinoco (antigo docente e reitor do liceu de Leiria).
Distinguido com o Prémio Pessoa 2024, Luís Tinoco é docente na Escola Superior de Música de Lisboa e director artístico do Prémio e Festival Jovens Músicos da Antena 2 – RTP.
Prefere não lhe chamar música erudita?
Também gosto do termo. Normalmente, a razão porque me refiro a música de tradição escrita é porque, às vezes, ajuda a perceber que não há qualquer tipo de preconceito ou elitismo quando se fala de música erudita. Só nos tempos loucos em que estamos a viver é que a ideia de erudição é uma coisa que incomoda as pessoas. Aceitamos que há erudição na literatura, na arquitectura, em tantas áreas, e ao mesmo tempo também existe literatura popular, arquitectura popular, por que razão é que na música, sempre que se fala de erudição, parece que cai o Carmo e a Trindade?
O conhecimento e as elites provocam até alguma revolta? Ou, pelo menos, são questionados? É um mau sinal?
Claro que sim. As verdades relativas, as percepções em vez dos factos, isso acaba por afectar tudo, não só as artes, como a ciência, como a vida que temos. A sociedade que nos envolve hoje em dia parece estar toda focada para o nivelamento por baixo. De uma forma muito perigosa, aliás, como em Portugal vimos muito recentemente com os resultados das últimas eleições. Assim como na política há muitas coisas que são consequência – em parte, não exclusiva – dos media, principalmente, televisão e redes sociais, mais do que imprensa escrita, quer dizer, a forma como as pessoas são bombardeadas com conteúdos nulos, a cobertura noticiosa, desde funerais a celebrações de vitórias desportivas a refluxos gástricos, à náusea, isso já acontece há muito tempo, por exemplo, nos fenómenos dos media em relação a uma cultura mais pop, que é uma evidência que é altamente beneficiada.
Falando de música popular, pop, rock, hip hop e outros géneros, será ouvida daqui por 200 anos como ouvimos hoje música do século XIX e até anterior?
Em alguns casos, eventualmente, sim. Não quero ser injusto e pôr tudo dentro do mesmo saco. Em todos os géneros, dentro da gaveta do pop, existem produções que são mais produção de mercado imediato claramente para um consumo de entretenimento e de proveito financeiro, mas também temos outros casos onde há muito mais experimentação, muito mais inovação, e esses, na minha opinião, são os que tendem, depois, a ficar. Por alguma razão ainda ouvimos temas dos Beatles, dos Genesis ou dos Camel.
Pesa mais a imprevisibilidade de precisar de um conjunto de músicos para ouvir pela primeira vez o que escreveu ou o entusiasmo, precisamente, de precisar de outras pessoas que vão interpretar e dar-lhe a ouvir?
Depende. Se estivermos a ver a questão numa perspectiva de a música ser uma arte performativa, ao contrário de um livro, que o escritor escreve, ele é publicado e a partir daí pode ser usufruído, um compositor depende dos músicos. E, nesse sentido, essa dependência, às vezes, pode ter um preço caro. Principalmente, se as obras exigirem um esforço humano maior. Muitas vezes, os compositores vêem-se numa “competição”, não no sentido do despique, mas da procura de um espaço de existência. Se pensarmos nas orquestras, é extremamente afunilado.
Não há assim tantas oportunidades para estrear música?
Vai havendo, mas é um espaço, às vezes, de ansiedade e de dificuldade, de ser preciso ter paciência e gostar-se muito do que se faz para esperar que as coisas aconteçam. Depois, o outro lado da pergunta que me colocou, é o lado menos ansioso e mais positivo da questão, que é, precisamente, o facto de precisarmos de trabalhar com outras pessoas. Na minha opinião, isso é bom, porque obriga-nos a ter uma relação que, pelo menos para mim, é sempre um enorme prazer.
Como compositor, a necessidade de inovar está em jogo de cada vez que parte para uma obra?
Quando comparo com aquilo que fiz para trás, aí é mais a preocupação de não me repetir. Qualquer pessoa que se dedique a uma actividade criativa, ao fim de algum tempo começa a perceber e a reparar que há pontos de retorno, que acabam por definir a voz e a linguagem. Sempre que identifico um reincidência quase mecânica de coisas que já fiz, há um sinal de alerta que acende e que me faz pensar como é que posso encontrar soluções pelas quais ainda não tenha passado. Porque essa é que é a parte estimulante; não é a repetição. Depois, por comparação com a prática, histórica até, para alguns artistas a questão da inovação, de procurar fazer qualquer coisa que nunca tenha sido feita, poderá ser mais importante do que para outros. Há momentos em que a questão de estar à frente do seu tempo terá sido mais urgente do que será hoje. Posiciono-me não numa perspectiva de estar sempre à procura de fazer qualquer coisa que vá inovar, mas no sentido de fazer sempre qualquer coisa que eu sinta que tenha uma expressão do meu tempo. Isso pode ter a ver com linguagens, com técnicas que hoje em dia existem e que no passado não existiam, recursos, sonoridades que ainda não existiam e passaram a existir, e pode ser, também, tudo aquilo que nos envolve, que nos preocupa.
A inteligência artificial tem o potencial de abrir horizontes? Ou, em termos teóricos, já está tudo inventado na música?
Seria um derrotismo enorme pensarmos que já está tudo inventado. Uma pessoa pode dizer: o que é que ainda pode ser feito com aquelas notas que não tenha sido feito antes? Que novo acorde pode ser inventado? Que ritmo? Mas a verdade é que essa questão não é nova e ao longo do tempo surgiram coisas que fizeram com que mesmo aquilo que já existe pudesse ser reinventado e reconstruído. No tempo do Brahms, ele não sabia seguramente qual é que era o som de uma avião a jacto, e, portanto, toda a envolvência sonora acaba por influenciar a forma como nós depois utilizamos no nosso tempo os sons, mesmo que sejam organizações de sons que vêm do passado, as tais notas que já existiam. A inteligência artificial agora está muito presente na discussão porque tem tanto de fascinante como de alarmante.
Essa dupla perspectiva, como é que se aplica nas artes e na música?
O alarmante é se deixarmos que ela substitua quem cria – e isso em alguns aspectos acontece. A inteligência artificial, em muitas coisas que lhe é pedido que faça, é uma apropriação, completamente plagiadora, de coisas que foram criadas por outros. É uma reciclagem de infinitas bases de dados de coisas que saíram de mentes individuais. Esse lado, de uma apropriação, muitas vezes ilegítima, da criação alheia, é muito preocupante até por uma questão ética. De um ponto de vista laboral, é preocupante se começar a ser, de facto, mais barato e mais automático e mais fácil pedir à máquina que faça em vez de pedir ao artista. Esse é o grande perigo. O outro lado, fascinante, é que é mais uma ferramenta e pode ser extremamente gratificante aquilo que se possa fazer com recurso a inteligência artificial. Não tenho qualquer tipo de antipatia, acho, no entanto, que devemos estar atentos à regulamentação para superar e contornar os tais perigos que existem.
Inspiração, existe?
Às vezes, há um estado de excitação no processo criativo. Já passei por essa experiência, sentir que em algum momento há ali qualquer coisa que me parece que está a funcionar e até em certa medida a ultrapassar aquela que era a minha expectativa para solucionar um determinado tipo de situação numa peça musical. Como nunca investiguei a neurociência ao ponto de poder estar aqui a falar de matéria que não é a minha área de especialidade, não vou estar a adivinhar e a dizer de onde é que isso vem e como é que o fenómeno do ponto de vista neurológico se desencadeia no nosso cérebro. Respondendo pela prática, acho que aquilo que muitas vezes assumimos como inspiração é na realidade uma consequência de uma forma de trabalho muito intensa. Há um lado muito laborioso, muito mecânico, de partir pedra, que é normalmente esse que na minha opinião tem melhores resultados. Não sei se é verdade, mas conta-se um episódio que terá acontecido com o Tchaikovski, que, em relação a esta pergunta, terá dito que se todos os dias estiver a trabalhar à mesma hora no mesmo local a inspiração se quiser ir ter com ele sabe onde é que o encontra.
Dá-se pouco importância ao impacto da poluição sonora?
E não só. O impacto do que é ouvir, por exemplo, o som do mar ou das folhas de uma árvore, do vento, um comboio ao fundo a passar, todos os sons que são coisas absolutamente preciosas. Esse respeito por uma ecologia do som, e essa curiosidade, é também uma coisa a que as pessoas às vezes não ligam. Eu, que adoro música, às vezes o que mais valorizo é o poder não ouvir música. Poder só ouvir o som que está à minha volta.
Ou até o silêncio, que escreve nas suas obras.
Tem a ver com a densidade. Por vezes, dou por mim com a necessidade de pôr muitas notas, um volume sonoro alto, um determinado tipo de energia e de actividade bastante densa, e bastante preenchida, e quase de certeza que a consequência que isso vai ter para mim é que a seguir vou sentir a necessidade de qualquer coisa que seja o oposto, que seja filtrado, despojado, silencioso.
Que memórias tem de Leiria?
Tenho uma relação umbilical com a cidade. Leiria esteve presente na vida de nossa casa até ao nível clubístico. Muitas vezes, quando era miúdo, ia com a minha avó a Leiria porque a minha avó ia acompanhar as aulas de dança da irmã dela, da minha tia Isabel. A razão porque eu ia era por causa das Brisas, como é óbvio. E depois, claro, o meu pai nasceu em Leiria e sempre teve a cidade de Leiria no seu coração.
É filho e neto de músicos.
Temos várias gerações de músicos na família. Pelo menos, desde os meus bisavós. Portanto, acho que o mal está mesmo inflitrado na genealogia da família.
Havia um caminho alternativo?
Se há, não conheço. Dos meus familiares próximos, tenho pessoas na área da música, da dança, da arquitectura, da pintura, da cenografia, até da fotografia.
É a pessoa certa para responder à pergunta: o que define um artista?
Bem, para já, curiosidade. Nisso, os artistas não são muito diferentes dos cientistas. Esse inconformismo, essa vontade de pesquisar, de fazer qualquer coisa que implique contemplação, mas, ao mesmo tempo, pergunta. É raro conhecermos alguém que diga que não gosta de artes, de consumir arte, mas, no caso das pessoas que criam, parece que há uma insatisfação: o consumo de arte é insuficiente. Quando ouço música que me deixa particularmente estimulado, a primeira coisa que me apetece a seguir é ir fazer música. Há esse lado de mimetismo e talvez seja esse contágio que define as pessoas que se dedicam às artes.