Desde o início do ano, seis mulheres e uma criança foram assassinadas em contexto de violência doméstica. No domingo, a GNR de Pombal deteve um homem de 38 anos em flagrante delito.
“Os militares, quando chegaram ao local, depararam-se com o suspeito a ameaçar a vítima, com a faca na mão” e impediram “que este realizasse a intenção das suas ameaças, tendo detido o agressor e apreendido a arma branca que ostentava durante as agressões à vitima”, refere uma nota de imprensa da GNR.
Os casos de violência doméstica são frequentes: só no ano passado foram apresentadas quase 30 mil queixas em Portugal, o que perfaz uma queixa de vinte em vinte minutos, segundo revelou o Expresso. No distrito de Leiria, em 2018, foram assassinadas seis mulheres pelos seus companheiros.
Ana, chamemos-lhe assim, teve melhor sorte, apesar de todo o trauma que sofreu ao longo de cerca de dois anos. Casados há vários anos, com três filhos, hoje, aos 49 anos, admite que o marido já ia dando indicações de alguma agressividade, quando discutiam e “partia as coisas em casa”.
As agressões físicas começaram quando deixou de trabalhar e se “meteu no álcool e nas drogas”. “Houve situações em que me mandava ao chão, apertava-me o pescoço e batia-me com a cabeça. Não sei por que o fazia”, relata. Os filhos menores apercebiam-se. Mas depois da violência vinha a “remissão”.
Aos poucos, Ana foi sofrendo em silêncio agressões após agressões, cada vez mais, com maior gravidade. O medo passou a dominá-la. O agressor manipulava-a e conseguiu afastá-la do círculo familiar e de amigos. “Fui caindo na teia dele e das agressões físicas passou para a psicológica: dizia que não valia nada, que não era boa mãe… Passei a ser um robot. Ia trabalhar e voltava para casa.”
Não tinha coragem de denunciá-lo. Receava que soubesse e lhe batesse mais e, sobretudo, temia pelo futuro dos seus filhos. “Não sabia o que podia acontecer.” A situação tornou- se insustentável para Ana, quando o marido passou a agredir o filho.
“Comecei por tentar dizer a uma familiar, mandando umas ‘indirectas’, referindo que as coisas não andavam bem, mas ela não percebeu.”
Um dia, tomou coragem e contou a uma amiga. Foi acompanhada pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima e denunciou o caso às autoridades. “Não tinha para onde ir. Escondia-me. Fui ameaçada de morte. Houve um dia em que chamei a GNR. Depois dos militares falarem com ele disseram-me que podia regressar a casa, porque ele já estava mais calmo. Recusei. Sabia que se entrasse poderia ser morta.”
Ana lamenta que, apesar do trabalha da GNR, o tribunal nunca tivesse aplicado a pulseira electrónica ao ex-marido, para garantir que não se aproximava de si. Foi ela que saiu de casa com os filhos. “Ele perseguia-me. A única coisa que a polícia dizia era para telefonar se precisasse de ajuda. Até o tribunal retirá-lo de [LER_MAIS] casa, fui eu que tive de arranjar alternativa onde ficar com os filhos.”
“Ele, como agressor, é que foi o protegido”, critica, revelando que foi ainda discriminada no trabalho, quando souberam que era vítima de violência doméstica. Foi despromovida e acabou por chegar a acordo para sair de uma empresa onde estava há 30 anos.
Vergonha a culpa
Ana confessa que sentiu “vergonha” e “culpa”. “Cheguei a pedir desculpa ao meu filho, porque achava que a culpa era minha.” Hoje, depois do divórcio, mãe e filhos têm acompanhamento psicológico e muita ajuda familiar, sobretudo dos pais, e de amigos. Regressar a casa foi difícil.
“Vêm muitas vezes à memória os locais onde fui agredida.” “É uma revolta enorme saber que são as mulheres que têm de sair de casa e esconderem-se com os filhos. Não é justo. Eles é que deviam estar isolados”, afirma, considerando que a justiça pouco faz pelas vítimas.
Ana tem um namorado, mas ainda não se sente preparada para voltar a viver com alguém. “Acredito que posso ser feliz. Já saí da minha zona de conforto, mas ainda estou a recuperar. Há momentos que ainda vou abaixo.”
A história de Ana é o reflexo de tantas outras. Catarina Louro, técnica de apoio à vítima na Associação Mulher Século XXI, em Leiria, explica que a “violência doméstica baseia-se num círculo composto por três fases: atenção, agressão e lua-de-mel”. Este círculo “cria dependência emocional sem que as vítimas tenham essa percepção”.
Ao mesmo tempo, “o agressor promove o isolamento da vítima, para que possa controlar tudo”. “Torna-se difícil sair deste círculo. As mulheres têm vergonha e assumem que falharam. Sentem-se muito culpadas”, afirma Catarina Louro, salientando que o agressor aproveita a fase das pazes para fazer a mulher sentir que é a culpada das agressões que sofre.
A escalada da violência vai subindo e a vítima passa a ser sobrevivente. A técnica alerta para a sociedade estar atenta aos sinais e o círculo mais próximo mostrar disponibilidade para ouvir.
Para Catarina Louro, o quadro legal português é suficiente, se for aplicado convenientemente, e defende o reforço do trabalho em rede de todas as instituições e forças policiais.