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Complicómetro e Implicância eram dois estorninhos tresmalhados. Certo dia, decidiram evadir-se do bando a que sempre haviam pertencido, esse corpo em movimento uniforme em que cresceram e se relacionaram com os restantes estorninhos, onde aprenderam a voar e a proteger-se. Implicância convenceu Complicómetro de que toda a vida deve ser feita de retiradas e deserções.
De genuína sobrevivência com recurso às convicções e caprichos, suprindo apenas as necessidades elementares para não ter de sair da rotina. O seu cérebro instintivo seria utilitário por si só, sem obrigação de auscultar o que os demais lhe sugerissem, mesmo que mais experientes no voo.
Estava mais do que comprovado que as decisões de ambos eram repletas de préstimo, que é o mesmo que certas, inclusive, aceites moralmente, porque auxiliavam na tarefa quotidiana do controlo das coisas. Onde o futuro os conduzia logo se veria, diziam também para si mesmos, que isso de voar em bando é coisa que amofina as penas.
Vejam bem o que é ter de adejar em grupo, sentindo o bulício das asas dos restantes estorninhos, coisa que despenteava as plumas da Implicância e fazia suar o penacho ao Complicómetro.
Por vezes, convenciam-se que era importante voarem os dois em dueto, ou seja, em dual bando, numa espécie de monólogo disfarçado de diálogo, o que era para eles um tónico, ainda que o voo durasse apenas o suficiente para se mudarem de um galho para o outro, na árvore do costume, permanecendo numa posição conformista, já que voar para outras direcções ainda poderia causar-lhes alguma espécie de astenia própria das aves temerárias.
Mesmo o acontecimento mais insignificante do quotidiano era considerado um empecilho, uma atrapalhação ou impasse. Mais do que isso: um estorvo, uma enrascada ou inconveniente. Era tão mais cómodo manter-se no ninho resguardado pelo beiral do telhado habitual do que voar com outras ambições!
Certo dia, Complicómetro, mesmo a custo, ousou reflectir. Ele que tinha no seu currículo uma criancice de voos destemidos, sempre no perímetro do bando. E deu por si a matutar na seguinte indagação: “existiríamos nós em pleno se ninguém testemunhasse a nossa vida, além dos que connosco estão sempre?”.
Talvez a resposta a esta pergunta o impedisse de combalir ou de render-se às embirrações de Implicância. Queria contrariar aquele comodismo, aquele enfado. As ideias raramente lhe surgiam desprovidas de sentido.
Por isso, decidiu descolar daquele marasmo. Pressentia que quanto mais soubesse mais conseguiria voar. Foi em frente, ampliando os horizontes do voo. Quanto a ela, não se sabe se atendeu ao sibilo dele, naquele lugar do seu pensamento fértil em descrenças.
Desdenhava das suas opiniões, sobretudo quando lhe vinha com aqueles aforismos que bebia dos estorninhos da Grécia Antiga. Pois, nem por acaso, Complicómetro, antes de se lançar no voo, deixou-lhe na dormência do ninho um bilhete com uma frase da sua autoria e que declarava assim: “Tenho as asas trôpegas e antes que me fiquem emperradas apanho boleia do bando, cujo rumo me é de feição.
Sabes, a vida que não é questionada não merece ser vivida”, o que deixou Implicância atarantada das asseverações.
