“Uma opção para o futuro e para as gerações vindouras”. Foi desta forma que Álvaro Madureira, vereador do PSD, defendeu a ideia que apresentou, na última reunião de executivo, realizada na semana passada, no sentido de a Câmara de Leiria encetar negociações com vista à aquisição da Mata da Curvachia.
Uma área florestal com cerca de 220 hectares situada entre os Pousos e o Arrabal, a poucos quilómetros da cidade, que entre carvalhos, sobreiros, vários tipos de pinheiros e alguns eucaliptos esconde pequenos paraísos.
A ideia, apresentada num momento em que o município está a delinear o orçamento para o próximo ano e as grandes opções do plano para o quadriénio 2022-2025, foi o pretexto para o JORNAL DE LEIRIA visitar esta reserva de biodiversidade, que funciona ainda como um retrato bastante fiel do que era a floresta portuguesa nas primeiras décadas do século XX, com várias espécies autóctones: carvalho-cerquinho, amieiro, sobreiro, pinheiro-bravo e manso, medronheiro, figueira, nogueira, salgueiro ou loureiro.
Nesta visita, fomos conduzidos no terreno por José Agostinho, que conhece a Curvachia “há mais de 30 anos” e que funciona hoje como uma “espécie” de vigilante da mata, e à distância pelo testemunho de duas das proprietárias do espaço, que confrontámos também com a possibilidade de o venderem ao município (ver texto ao lado).
Uma delas, Manuela Raposo Magalhães, é peremptória na indisponibilidade de se desfazer da sua parcela. Por seu lado, Maria do Carmo Cabêdo não descarta totalmente essa hipótese. Faltou ouvir a terceira proprietária que o JORNAL DE LEIRIA não conseguiu contactar.
De parcelas agrícolas a mata
Antes de penetrarmos na mata – entramos pelo lado Norte, mais perto dos Pousos – José Agostinho faz questão de enfatizar que se trata de uma propriedade privada.
“Há quem entre de qualquer maneira, como se fosse tudo deles. Não é. Tem dono e merece ser tratado e desfrutado com respeito”, defende.
O mesmo apelo é repetido por Maria do Carmo Cabêdo, que lamenta a utilização indevida do espaço por motos e veículos de todo-o-terreno, que “invadem a mata, destruindo caminhos, abrindo outros”, e até por tractores usados para o “roubo de madeira”.
Feita a chamada de atenção, seguimos caminho e penetramos na mata, onde sobressai uma mancha de carvalhal, rodeada de sobreiros, pinheiros de várias espécies e tantos outros exemplares, [LER_MAIS]que cresceram à medida que a exploração agrícola do local foi sendo abandonada.
Maria do Carmo, que divide a titularidade da Mata da Curvachia com as duas irmãs, conta que a propriedade está na posse da família há muitos anos e que, numa fase inicial, era formada por pequenas parcelas agrícolas, “arrendadas aos habitantes das aldeias vizinhas”, onde se cultivavam hortas, árvores de fruto, vinha e olival.
Pouco a pouco, esses rendeiros, que chegaram a ser “mais de 300”, foram deixando de trabalhar a terra e a área florestal cresceu até ao ponto actual.
José Agostinho ainda tem algumas – “poucas” – memórias do tempo em que a Curvachia era cultivada. “Recordo-me da zona da vinha”, diz, enquanto nos conduz até a uma pequena área de olival que ainda subsiste e que foi limpa recentemente.
Para lá chegar, seguimos por trilhos onde é necessário afastar a vegetação para passar, sem escapar a uma ou outra silva ou ramo mais rebelde.
Somos poupados ao trilho dos javalis, nome como que José baptizou um dos percursos que abriu com a ajuda desses animais – “eles rompiam em baixo e eu em cima” – , que por ali habitam e cujas pegadas são visíveis em alguns pontos.
“Se ouvem vozes, escondem-se. Como venho muitas vezes sozinho, cruzo-me com eles. Também há raposas, ginetes e texugos”, desvenda, referindo que, em tempos, teve um encontro “complicado” com uma fêmea de javali acompanhada das crias.
“Assustámo-nos de parte a parte. Ela posicionou-se para me atacar e eu, sem saber muito bem o que fazer, gritei e ela afastou-se. Correu bem.”
Segundo Maria do Carmo, antes do 25 de Abril chegou a ser constituída no local uma coutada de caça. “Os beneficiários foram sempre ‘os da terra’, que usufruíam da caça sem qualquer pagamento”, conta a proprietária que, desde criança, testemunhou a ligação da mata à comunidade e às populações vizinhas, com a cedência de “madeira para construções, caruma para a cama do gado, pinhas para o aquecimento das águas”.
Cascata e fornos de cal O local serviu também, durante anos, para acampamento de escuteiros. “Aqui é o largo dos escuteiros”, observa José Agostinho, apontando para o espaço que, em tempos, era transformado numa aldeia de lona e que fica próximo de uma das maravilhas da mata: um carvalho monumental, cujo tronco necessita de quatro adultos para o circundar.
Seguimos, depois, pelo ‘trilho das trincheiras’. São dezenas de metros por um percurso que faz lembrar precisamente uma vala num campo de batalha e onde no Inverno corre “muita água”.
É também nessa época do ano que um dos recantos mais emblemáticos da Curvachia se apresenta em todo o seu esplendor. Trata-se da cascata, formada pela ribeira das Chitas que atravessa a mata, que agora está seca.
“São necessários dois ou três dias a chover para que a queda de água volte a formar-se. Se chover a sério, não se consegue passar”, explica José Agostinho, que nos leva também ao seu “canto sagrado”: uma bica que tem “sempre” água a correr e onde no Verão gosta de saciar a sede.
O entusiasmo com que partilha o segredo rapidamente dá lugar à tristeza ao detectar no piso vestígios da passagem de motos perto de um afloramento rochoso (o mesmo do Vale do Lapedo). “Isto é que não pode ser”, desabafa.
A visita não podia deixar de fora o que resta dos antigos fornos, onde em tempos as pedras retiradas dos campos agrícolas eram transformadas em cal com recurso à madeira da mata, que servia de combustível.
Além dos fornos, há ainda ruínas que “dão testemunho de uma casa, curral para rebanhos e poços de captação de água”, refere Maria do Carmo.
“A Curvachia é um espaço que nos diz muito, que aprendemos a cuidar. Desde novas que participávamos nas decisões de gestão. Os nossos pais envolviam-nos nisso. Temos as melhores recordações”, afiança Manuela Raposo Magalhães, arquitecta paisagista ligada ao Instituto Superior de Agronomia, que tem utilizado a sua parte da propriedade (a mais próxima do Vidigal) como “laboratório”. “Que melhor espaço podia ter? A mata é paraíso.”