São jovens, escolheram a especialidade de Medicina Geral e Familiar (MGF), a emigração não os seduz e acreditam no Serviço Nacional de Saúde (SNS), mesmo com os seus defeitos. O sector privado ainda não é uma opção para os quatro clínicos ouvidos pelo JORNAL DE LEIRIA, no âmbito do Dia Mundial do Médico de Família, que consideram o médico de família um confidente e aquele que conhece o doente como ninguém.
“Trata-se da especialidade mais complexa e também mais completa e é isso que leva hoje em dia muitos jovens a optar pela MGF”, adianta André Dias, 35 anos, natural de Vendas Novas.
Médico de família na Unidade de Saúde Familiar (USF) Vitrius, na Marinha Grande, o especialista afima que se trata de “uma especialidade que se ocupa do ser humano desde o seu nascimento até à sua morte”.
“Enquanto muitos colegas de outras áreas médicas dizem aos seus doentes: isto não é comigo, aos médicos de família é-lhes exigido que saibam sobre todas as áreas do conhecimento médico”, assume.
Esse é o desafio da MGF, que tem conquistado mais jovens para esta especialidade, vista por muitos como pouco glamorosa, estigma que se tem esbatido. André Dias garante que foi a complexidade e completude da MGF que o apaixonou.
As mesmas razões que conquistaram Beatriz Correia, 26 anos, Catarina Custódio, 28 anos, internas de MGF, e João Cardoso, 31 anos, médico, todos na USF Santiago, em Leiria. A especialidade de MGF foi reconhecida em Portugal em 1990 e trouxe um novo olhar para o papel do médico que acompanha o utente no seu todo.
Para Catarina Custódio, o médico de família “tem muita proximidade com os utentes”, baseia-se em consultas, valência que prefere, muito mais do que cirurgia ou urgência hospitalar.
“Fascina-me pela continuidade de cuidados, pela transversalidade de problemas e pelo impacto muito importante que conseguimos ter a longo prazo na vida das pessoas”, destaca a jovem natural de Leiria.
Pessoas saudáveis
O médico de família é “para toda a gente”, sublinha Beatriz Correia, ao referir que a porta está sempre aberta e é alguém que “tenta manter as pessoas saudáveis”, apostando na prevenção.
João Cardoso e André Dias reforçam o papel de alguém que escuta o utente no seu dia-a-dia. “Temos o privilégio de os conhecer no seu contexto e na comunidade, o que é bastante gratificante”, refere João.
André acrescenta que muitos utentes lhe dizem que faz parte da família. “Ouvimos muitas confidências, que antigamente eram os senhores padres que escutavam. Além dessa intimidade que se cria entre o médico e o doente, há uma relação de confiança. Há utentes que vão a outros especialistas e vêm perguntar-nos se validamos o que o colega prescreveu.”
Estes laços e o reconhecimento da preparação do médico de família é também evidenciado por muitos pais que optam por seguir as suas crianças nas unidades de saúde, ao invés do pediatra. O mesmo se passa com grávidas, independentemente da capacidade financeira, que abdicam do obstetra.
“Acredito que grande parte dos portugueses já vê o seu médico de família como um profissional capaz de lidar com as mais variadas situações de doença. Muitas vezes somos psicólogos, amigos, assistentes sociais… e resolvemos diversos problemas”, confessa André Dias.
Quando terminou o curso, este médico gostava de todas as áreas da medicina. “Sabia que não era tão vocacionado para as áreas cirúrgicas, aquela parte mais técnica de ter. Gosto muito mais da presença do ser humano consciente à minha frente.”
O mesmo sentimento tem Catarina Custódio, que realça a “continuidade de cuidados, pela transversalidade de problemas” e o impacto que acredita que têm a longo prazo na vida das pessoas. Desde cedo João percebeu que não se identificava com a vertente hospitalar.
“É o contacto com o utente que me deixa mais feliz e realizado e é isso que me faz viver muito intensamente a medicina e me leva todos os dias a acordar com vontade de vir trabalhar.”
A especialidade de MGF não atraiu de imediato Beatriz, mas o caminho para ser médica de família surgiu para ter tudo o que gostava. “Não queria abdicar de estar com pessoas de nenhuma idade. Não queria abdicar de estar com crianças, mas a pediatria não era para mim. Também gosto muito da saúde materna e da mulher, mas a especialidade de obstetrícia e ginecologia também não seria para mim e também gosto muito da geriatria.”
A MGF “é uma especialidade bastante nobre, tendo em conta que vê o utente no seu todo”. O médico de família quase que “junta as pecinhas todas, porque os utentes são seguidos,por vezes, em diferentes consultas”.
Além disso, há um acompanhamento da família. João e Beatriz privilegiam também a sua própria família e tempo próprio, pelo que a conciliação com a profissão é importante. Nos Cuidados de Saúde Primários não fazem noites e raramente trabalham aos fins-de-semana. Catarina Custódio destaca a “qualidade de vida que proporciona, no sentido de permitir ter um horário mais previsível e mais estável, sem urgências de 24 horas”. Não obstante, reforça que é a sua paixão pela especialidade que a faz ser médica de família e porque acredita que pode contribuir para melhorar os cuidados de saúde.
Esta interna entende que o médico de família centraliza os cuidados. “É a porta de entrada para muitas outras especialidades e também um médico articulador de muitos profissionais, de enfermagem, administrativos, nutricionistas… É realmente a primeira linha em muitos casos.”
Ir ao médico para… falar
Os domicílios são uma “mais-valia enorme em termos de conhecimento do contexto do doente”, aponta Catarina.
“Há utentes mais idosos que ainda vestem o melhor fato para vir ao médico, e isso muitas vezes não é um reflexo da realidade do contexto em que vivem. Os domicílios acabam por nos mostrar a realidade em que vivem os nossos utentes”, constata.
Esse conhecimento contribui para que o médico de família tenha possibilidade de intervir na integração de cuidados com as instituições da comunidade do ponto de vista social. “Quando o médico reconhece que há fragilidade social ou um défice socioeconómico, activa os mecanismos de suporte, contactando, por exemplo, assistentes sociais.”
O isolamento social é também detectado em muitas consultas, sobretudo, com os idosos, que vão ao médico para conversar. Apesar de fisicamente poderem estar bem, Catarina alerta que esse é um sinal que algo se passa.
“Se nos procura para conversar, geralmente há algum problema subjacente e pode ser um isolamento social, que não deixa de ser um problema médico. Cabe-nos a nós perguntar e explorar.”
Tem ainda um papel preponderante na prevenção, ajudando ao esclarecimento, à realização de rastreios de vários cancros e ao controlo de doenças crónicas. João Cardoso salienta a intervenção do médico de família na identificação precoce de doenças, impedindo, muitas vezes, de se tornarem fatais.
“Estamos na primeira fila da vida de um doente e sentimos o carinho dos utentes, o que nos conforta o coração.” Esse reconhecimento é muitas vezes expresso através de pequenos mimos. É comum receberem chocolates, bolos, couves ou ovos, como forma de agradecimento.