Um dia, há coisa de sete anos, Miguel Saraiva olhou para a barriga e não gostou do que viu. A chegada aos quarenta tem destas coisas e o projectista achou que aquela saliência não podia continuar ali. Pegou na esposa, Sara de Brito, que também se fez (grande) atleta, e começou a dar umas voltas no Polis, em Leiria.
Primeiro foram 500 metros, depois um quilómetro, depois dois, “os números foram-se multiplicando” e “foi sempre a dar ao pedal” até chegar ao valor “de respeito” que tem marcado para a próxima quinta-feira, dia 30 de Novembro, quando estiver na linha de partida do Algarviana Ultra Trail.
Como o nome indica, a prova é disputada na Via Algarviana, uma grande rota pedestre (GR13) que atravessa todo a serra algarvia, ligando Alcoutim, nas margens do Guadiana, a Sagres, no Cabo de São Vicente, tendo uma extensão de… 300 quilómetros. Um desafio e tanto para este ultra de 49 anos, que até aos primeiros metros nas margens do rio Lis nunca correra na vida. “Só para fugir da chuva.”
Verdadeiro especialista em provas ultra, Miguel Saraiva já participou em diversas competições de cem ou mais quilómetros. Só este ano foram três: Sicó, Serra da Freita e São Mamede. No entanto, a maior distância que já percorreu foram 100 milhas, aproximadamente 168 quilómetros, num evento em Espanha.
“Agora, na maior prova que existe em Portugal e uma das maiores do Mundo, será praticamente o dobro.” Se concluir entrará num grupo restrito de “loucos” atletas em que já estão João Colaço e Jorge Serrazina, que também vai estar à partida do Algarviana Ultra Trail.
De dureza extrema, “um parte pernas enorme” com um desnível acumulado suficiente para subir seis vezes a Serra da Estrela, a prova tinha, pois, as inscrições limitadas a 60 intrépidos. “É um desafio pessoal e a maior coragem não está efectivamente na prova, mas na decisão de me inscrever”, explica o atleta. “É quase por impulso. A partir daí vem um longo e duro trabalho que se vai traduzir, ou não, na prova.”
A preparar-se “há meio ano”, teve meses em que ultrapassou os 400 quilómetros. “É muito volume, muita carga e o corpo desgasta-se enormemente. [LER_MAIS] Por isso, o mais difícil é chegar ao dia de prova sem qualquer lesão.” Miguel vai partir com uma lesão no músculo solear. “Tive azar. São coisas que acontecem, e agora estou a ter terapia todos os dias para estar o melhor possível na quinta-feira.”
Trezentos quilómetros, com apenas 72 horas de tempo limite, “vai ser complicado de gerir”, admite. “Neste tipo de aventura os planos podem facilmente sair furados. Há o plano A, o plano B e o plano C, para fazer face ao A e ao B. Não estou a fazer conta de parar para dormir, só se for no plano C, para dormir uma, duas horas, o que for necessário.”
Na cabeça, um turbilhão. “Uma das coisas que pensamos nestas aventuras é que somos parvos, perguntamos o que estamos ali a fazer. Há provas tão boas de dez quilómetros, que no final bebemos umas imperiais com os amigos e nestas mais longas temos de sofrer. A questão psicológica é a mais importante. O músculo cerebral está treinado, vamos ver se o corpo responde."
O objectivo? "Chegando ao fim já fizemos um extraordinário resultado. Mas quando vemos que somos capazes surgem novos desafios, que serão obrigatoriamente maiores.”