No meio de uma conferência sobre música, na última edição do South By Southwest, dou por mim num daqueles momentos que nos faz estremecer, soltava-se, de uma forma tão natural, uma frase aparentemente tão pragmática como: sejamos francos, a música hoje em dia já não é um fim nem sequer um meio, tornou-se numa “desculpa para”.
Numa discussão de música que trocava bits e bites entre ambientes de tik tok, discord ou roblox, advoga-se que a música é, cada vez mais, uma desculpa para melhorar o ambiente de jogo (cerca de 70% da música que os miúdos até aos 14 anos ouvem acontece enquanto jogam e 25% enquanto estão em redes sociais) ou uma desculpa para ir a um festival e estar com os amigos e ter bons posts de redes sociais (independentemente dos artistas do cartaz).
Chegamos nós de sorriso nos lábios pós pandemia para as conferências da nova normalidade e do “vai ficar tudo bem” e zás, toma lá disto. O equilíbrio impossível entre o excesso de produção e a fragmentação das receitas que deixa por terra aspirações profissionais de novos talentos. O drama e o horror de quem olha para estas transformações no consumo e no mercado com a mesmo desdém com que os nossos avós olhavam para a potencialidade de um telemóvel ser a principal ferramenta de trabalho ou de se poder, a partir de casa, trabalhar numa empresa internacional.
Alguém na sala, qual profeta da desgraça, fez questão de resgatar de imediato a teoria de Yuval Noah Harari sobre a consequência do aparecimento inevitável de algoritmos não-conscientes altamente inteligentes que podem fazer quase tudo melhor que os humanos. Até 2050, defendia o autor, íamos ter uma nova classe de pessoas, as dispensáveis. Desempregadas e não empregáveis, alimentadas num sistema de renda básica universal e que teriam nos jogos de realidade virtual a sua principal ocupação diária. Mas basta olharmos em redor para constatarmos que, apesar de toda a evolução, nunca precisámos de tanta mão de obra e de tanta imigração.
As regras do jogo estão a mudar constantemente. A uma velocidade cada vez maior e sim, é cada vez mais difícil acompanhar essa mudança e incentivar junto dos mais novos a valorização e a monetização do trabalho artístico, cultural e criativo, para além dos universos do gaming, do audiovisual e da moda. Mas o problema da música “não ser um fim nem um meio mas ser apenas uma desculpa para” não é um problema. Nunca houve problema na forma como as gerações mais novas foram mudando os hábitos. Haja vontade de ir conhecendo as novas regras do jogo, de voltar a olhar para ele como se fosse novo e de ir tentando passar nível atrás de nível.