Caminhar na zona queimada levanta o cheiro requentado a incêndio e cinza. Remendos de azeviche marcam os sítios, na EN236, onde arderam os carros onde mais de 40 pessoas perderam a vida. Gente que fugia das labaredas; pais, crianças, avós, famílias inteiras. Mas se dúvidas houvesse do que ali aconteceu, coroas de flores colocadas na berma, facilmente as esclareceriam.
Agora, carros com famílias deslocam-se, agora, à infame recta para "ver". São excursões macabras de gente que assistiu aos incêndios pela televisão e, agora, fazem ali uma espécie de catarse.
Na Rua dos Dias, os dias deixaram de passar. O tempo em Figueira, freguesia da Graça, parou há dois meses e as conversas perderam a importância. Os ouvidos deixaram de ouvir e os olhos de ver, tapados por uma sombra de tristeza.
Na Rua dos Dias, Rosalina Rosa, 79 anos, perdeu tudo. Ficou feito em cinza. No primeiro dia do fogo, a 17, o demónio de hálito escaldante e fedorento que é o fogo, rondou-lhe o lar. Queimou o palheiro do lado, secou as torneiras e o poço.
No segundo dia, a 18, já com a lição estudada, entrou-lhe à socapa, por baixo das telhas e roubou-lhe uma vida de trabalho. “Já não tenho paciência para as pessoas que andam por aqui a perguntar como foi que aconteceu!”, desabafa.
No número 5, da Rua dos Dias, fica o café do Lino, que é o filho da Rosalina. Ela é conhecida como "a mulher do chapéu da Figueira". É a sua marca registada. Nunca o tira, nem quando vai ao médico. Tem um especial para essas visitas.
Por cima do balcão, a televisão está ligada e passa mais um programa de tarde de Verão, difundindo um travesti da cultura popular portuguesa, com música pimba e artistas de talento questionável.
Sentada de costas para a parede, Rosalina controla a porta. A esta hora, tomado que está o café pós-prandial, os clientes escasseiam. "Vêem-me, lá'lém, mais o Presidente?", diz, apontando para a parede oposta, onde aparece numa fotografia ao lado de Marcelo Rebelo de Sousa.
"Esteve dentro da minha casa queimada, logo a seguir ao fogo e prometeu que, em Dezembro, as casas iam estar construídas e que ele vinha cá passar o Natal com a família."
“A mulher do chapéu” e o filho solteiro, Adelino, perderam tudo. Só ficou o café. O resto esfumou-se. Enquanto esperam uma ajuda para reconstruir a casa, dormem em casa da irmã de Rosalina.
Naquele dia, ela e o filho ligaram incessantemente para os bombeiros, mas não tiveram resposta. Talvez fosse por causa do Siresp, do diabo ou do fim do mundo. Resignaram-se e fecharam-se no pequeno café do Lino. Foi da guarita que sofreram a angústia de ver a casa transformar-se em cinza.
"As paredes a tombar para o chão… Aquelas bolas de lume pareciam bombas que puseram para aqui. Rebentavam com tal estrondo! Vi muitos fogos, mas nunca uma coisa assim", recorda, com a voz afogada em lágrimas.
O discurso é marcado por silêncios, como se a voz, pequenina, enferma de tristeza, procuras-se fôlego para se fazer ouvir. "Ando doente… ando doente. Sinto-me mal. Abatida da cabeça e do corpo. Perdi muito peso."
[LER_MAIS] Gostava que um psicólogo a "visse", mas não foi a nenhum ainda. "À noite, tomo um comprimido para os nervos e, de manhã, ao pequeno-almoço, uma ‘injecção bebida’ para o cérebro."
Com notícias que falavam de dezenas de mortos, naqueles primeiros dias, as pessoas da aldeia recolhiam-se em conversas no café do Lino. "Uns choravam outros ficavam calados. Até tínhamos medo de ver a televisão. Hoje, ainda andamos tristes. De dia para dia, tristes." Na aldeia, arderam seis casas, duas, a de Rosalina e da amiga Noémia, eram de primeira habitação. "Perdemos uma vida inteira. Móveis bons, loiça, talheres, vinho, azeite, batatas… tudo."
Noémia já viu as máquinas arrasarem as paredes cozidas pelo fogo e prepararem o trabalho para as fundações, mas não está na aldeia. Vive, temporariamente com familiares. Rosalina já foi abordada pela Caritas, mas continua a olhar pela soleira da porta, para o seu antigo lar, do outro lado da rua e sonha com as palavras do Presidente da República.
"Até ao Natal, disse ele. Mas não acredito. As casas não se fazem de um dia para o outro e, não tarda, vem o Inverno, começa a chover e já não se pode trabalhar."
O Estado também parece apostado em dificultar ao máximo a vida a quem perdeu tudo. Porque era preciso uma certidão da Conservatória do Registo Predial, Rosalina deslocou-se a Pedrógão Grande. Pelo papel, com meia-dúzia de linhas, pagou 250 euros. Como ela, as pessoas na mesma situação estão a receber a mesma conta. "Não perdoam, nada!"
Quase a fazer 80 anos, diz que tem medo de não chegar a ver a sua casinha refeita. "O que andam a fazer com todo aquele dinheiro que juntaram para ajudar as pessoas? Eu não vi nenhum. Ficam com ele? Já era para andarem por aí a mexer!", reclama.
Grupo de voluntários ajuda
O Grupo de Voluntários para Pedrogão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos está no terreno há seis semanas. Aos fins-de-semana, cerca de duas dezenas de voluntários seguem o lema de Baden-Powell e tentam deixar o mundo um pouco melhor do que o encontraram.
Tal como os escoteiros (AEP) que têm marcado presença na região afectada pelo fogo, abdicam do seu tempo e vão ajudar quem precisa a pintar casas, a reconstruir telhados, currais, galinheiros e coelheiras e a replantar hortas. Contam com elementos de Caldas da Rainha, Anadia, Lisboa, Porto entre outros pontos do País.
Aos sábados e domingos ajudam quem precisa, a troco de nada. Para comprar os materiais contam com apoios de várias entidades e empresas. Recentemente, tiveram um contributo de dois mil euros do Clube Português de Wolfach, Alemanha, e de mais dois mil, da Metalomecância da Maceira. O resto, sai-lhes do próprio bolso: carros, combustível, alimentação e despesas de deslocação.
Tudo começou com um grupo de Vieira de Leiria e com uma ideia no Facebook. "Lancei a ideia e dois malucos juntaram-se a mim e esses trouxeram mais dois e, agora, temos 350 seguidores. Saímos daqui de alma cheia, todos os fins-de-semana", assegura Vera Braga, natural da vila do concelho da Marinha Grande.
Dormem numa casa em Casal das Freiras, Vila Facaia. "É lá a nossa sede de campanha", explica Tânia Agostinho, que veio da Benedita.
Federação e Benfica apoiam crianças
No dia 27, o Grupo de Voluntários para Pedrogão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos vai organizar um evento para todas as crianças – e pais – que se desloquem a Vila Facaia. "Queremos que esqueçam o 17 de Junho que memorizem o 27 de Agosto, como um dia feliz."
A iniciativa começou quando o grupo enviou uma carta à Federação Portuguesa de Futebol a pedir uma bola autografada pelos jogadores da Selecção. "A Carolina, a primeira menina que conheci aqui, é portadora de deficiência e só comunica através de uma bola. A Federação não enviou apenas uma bola autografada, mas uma para todas as crianças que estiveram ligadas ao incêndio em Vila Facaia", recorda Vera Braga, que também desafiou os três grandes do futebol a participarem.
O Benfica aceitou e vai levar para Vila Facaia um Estádio da Luz portátil. O fogo ainda está bem presente na mente dos habitantes. "Há três semanas, quando ocorreu o incêndio de Mação, havia pessoas que paravam na rua a olhar para a coluna de fumo, aterrorizadas", diz Vera. A organização acolhe todos os que quiserem participar e só pede que se levem alguma comida e bebida para o lanche partilhado.