Gil Ferreira é um pai típico. Orgulhoso da sua prole, preocupa-se com as suas meninas e não quer que nada lhes aconteça. Filipa, a mais velha, estuda em Londres, uma circunstância que, nos dias que correm, não o deixa tranquilo.
Confrontado com a hipótese, por mais remota que seja, de um atentado, de um assalto ou de uma agressão, resolveu “impor uma valência” e meteu a família no krav maga.
“Já apanhei alguns sustos e até já levei alguns tabefes, principalmente quando era militar, mas o medo de haver mais alguma coisa, de ser assaltado, nunca me perseguiu muito. O que me perseguiu, admito, foi pensar que as minhas filhas pudessem vir a precisar de alguma coisa e não saberem como se defender”, explica o vidreiro da Marinha Grande.
Encontramo-lo no treino de terça-feira à noite, na Touria, nos Pousos. A maioria são mulheres. O grupo é pequeno, quase familiar, e todos encaram esta actividade física com motivação, mas de sorriso nos lábios.
Entre golpes falhados e defesas bem aplicadas, a boa disposição é permanente. Preocupado em tornar a preparação vigorosa, mas em ambiente descontraído, Xavier Silva é firme quase sempre e condescendente às vezes.
É uma figura incontornável do basquetebol regional e não serão tantos os que têm conhecimento desta vertente ligada à luta. Mas a verdade é que a primeira modalidade que praticou, ainda em Moçambique, foi o boxe.
“Os empregados do meu pai chamavam-me. A minha mãe não queria, mas eles diziam: ‘senhora, menino vai precisar quando for homem’.”
Depois, passou pelo judo, ju-jitsu brasileiro, sempre em paralelo com o basquetebol. Há coisa de uma década, “farto de modalidades de combate com regras”, encontrou algo diferente, a “defesa pessoal pura”. Até hoje.
É o verdadeiro salve-se quem puder. O krav maga nasceu em Israel, nos anos 30 do século passado, para ajudar as pessoas a defenderem-se num contexto urbano de opressão.
Aqui, não há vitórias, nem derrotas. Não é arte marcial, nem sequer modalidade desportiva. “Não tem regras e destina-se a ensinar às pessoas o básico para que sejam capazes de sair de uma situação complicada”, explica o responsável.
Como preceito, o krav maga ensina a prevenção, a “evitar situações de risco”. “Há princípios que são fundamentais para preservamos a nossa segurança. Quais? Nunca voltar pelo mesmo sítio e fazer sempre trajectos diferentes, utilizar os espelhos nos levantamentos Multibanco e ter sempre uma mão disponível para, no acaso de surgir uma situação de agarro, ter forma de se defender”, diz Gil Ferreira.
Não é para ser bonito, é para ser eficaz. “É possível morder, até arrancar uma orelha. Aliás, 90% dos golpes são nos genitais. O objectivo é não morrer, é não ser violado, é não ser assaltado”, explica Xavier Silva, que responde a quem diz que uma actividade física violenta.
“Quanto vale a nossa vida? Krav maga não é heroísmo. É tentar arranjar três ou quatro segundos para nos conseguirmos libertar e fugir.
[LER_MAIS]O treinador garante que é muito produtivo. “É um mosaico das técnicas mais eficazes de todas as artes marciais. É um sistema comprovado que foi aplicado em ambientes hostis de guerra e não é por acaso que é adoptado pelas forças especiais. As técnicas que são ensinadas já passaram a prova de fogo”, sublinha.
Servem para qualquer pessoa, de qualquer estatura, “por mais pequeno que seja”. De qualquer forma, é preciso ser assíduo aos treinos, porque “claro que não é um iniciante que tem meia-dúzia de aulas que está pronto a responder a todo o tipo de ameaças”.
Segurança
Sempre que vem de férias, a filha mais velha de Gil Ferreira acompanha o pai e a irmã às aulas. “As valências que aprendem deixam-me seguro”, garante o progenitor. Quando está para lá do Canal da Mancha, Filipa está impedida de desconectar-se de tudo o que a rodeia, explica o pai.
“A primeira coisa que fazemos quando surgem as notícias dos atentados é rever por telefone as regras de segurança. Se ainda se lembra quais são os primeiros movimentos que deve fazer numa tentativa de rapto ou de agressão.
No dormitório, tem colegas de várias nacionalidades e também fazem um mini-treino com alguns movimentos básicos.”
E se e Gil antecipa um possível problema com as suas meninas, também há nas aulas de Xavier Silva quem tenha sofrido na pele uma agressão e, por isso, resolveu alinhar no krav maga.
Uma delas é médica e foi ameaçada por não ter passado uma baixa a um paciente. “De início, quando batia em alguém ficava aflita. Agora já bate a sério”, conta Xavier. A outra trabalha num café e levou uma facada depois de ter dito mal de Donald Trump.
São situações “incríveis” e a prova de que o rastilho pode acender-se de um momento para o outro. É isso que motiva as pessoas: “sentirem-se mais seguras e preparadas para qualquer eventualidade”.
“Mais vale saber e nunca precisar do que precisar e não saber”, sublinha o treinador. “Na questão da auto-defesa, fico mais confiante se souber que perante qualquer imprevisto estou pronto a responder.”
Para lá chegar, é preciso ter noção de que é uma actividade “repetitiva”. Se for praticada várias vezes acaba por ganhar-se “memória muscular”. São coisas simples, mas “muito eficazes”, que permitem arranjar uma escapatória perante diversos tipos de ataque de que podemos ser alvo, seja uma discussão num bar, uma tentativa de assalto ou de agressão.
Simulação: “dá-me o teu relógio”, diz Gil para Xavier, com uma faca a fingir na mão. Já se sabe que o que vai acontecer, não já?
No krav maga ensina-se, por exemplo, o posicionamento de costas para a parede. “É a forma de dominar todo o ambiente que nos rodeia. A questão da prevenção é a primeira coisa que ensinamos, mas somos capazes de responder a qualquer tipo de ameaça, seja de agarros, pontapés, socos, armas brancas ou fogo.”
Está pensado para isso tudo e tem vindo a ser trabalhado ao nível das forças de elite e de segurança pessoal.
Se quiser alinhar, fique a saber que nos treinos são colocadas várias protecções. Canelas, boca, órgãos genitais e peito, no caso das senhoras, estão seguros. Se é importante para quem defende, também é para quem ataca. “É extremamente desconfortável bater em alguém. E se a pessoa não treina, quando tiver de o fazer vai sentir-se inibida.”