O cheiro da infância engana. Mente. À mente da gente. A casa vintage, o pão com manteiga e tudo tratado. O castiçal iluminado. O lustre pendurado. O futuro arrumado e ensinado. A lareira acesa, a novela brasileira e o chão encerado.
As horas certas para dormir acordado. Quem manda nisto agora? Algures no tempo, deixaram de puxar o lustro à existência da meninice. Acabaram com o sustento da inocência. Quem manda na vida agora?
Lá atrás, há muito muito tempo, ser ou não ser não tinha questão nenhuma. Não era preciso ser-se outra coisa senão o que se é. O que se era. Aí, nessa liberdade inata, fomos e seríamos imensamente felizes para sempre.
Mas algures no tempo, era uma vez essa coisa das histórias de enc antar. Foram-se deixando disso. Quem mandou? Não é apenas a distância dos dias que nos separa da infância. É este distanciamento profundo de uma realidade sugerida em que acreditámos piamente.
Sob o manto da protecção, jamais poderíamos descortinar o desassossego que aí vinha e que para aí anda. Em nenhum momento nos foi dada a hipótese de desconfiar que a felicidade não segue um movimento contínuo.
Nada é tão certo, afinal. Nada é absoluto. Nada é controlável. Percebo isso, agora. Agora que se foram todos embora. Nada é eterno.
Da infância feliz, não resta ferramenta alguma. É-se atirado cego para a arena sem escudo nem arma. Quem manda na v ida agora?
Pela infância feliz, sinto-me agradecida às vezes. [LER_MAIS] Outras vezes, enganada. Não me leves a mal. Nestes dias vazios dou por mim a pensar nestas coisas. Ou talvez não seja eu. Pensando melhor, a culpa é do Chico Buarque.
Hoje fechei o seu livro sem conseguir esquecer uma f rase: “Bem antes da doença e da velhice, talvez minha vida já fosse um pouco assim, uma dorzinha chata a me espetar o tempo todo, e de repente uma lambada atroz.”
Tens toda a razão, Chico. Teria valido a pena saber disso um pouco antes? Faria diferença? Não faço ideia. Dessas atrocidades, não falavam nos livros da Anita. E as lambadas doíam menos.
*Pessoa criadora de conteúdos