A celebração do Nascimento de Cristo, para os cristãos, foi, ao longo dos séculos, um momento de alegria alicerçado na renovação da aliança entre o Messias e as comunidades.
Entre os parcos pertences, como sinal de afecto, procurava-se algo para repartir e manter acesa a chama da partilha desinteressada a quem mais precisa e do amor ao próximo.
Hoje, porém, a Festa da Luz passou a ser uma espécie de competição de luzes e iluminações e a celebração do Cristo, que nasceu sem-abrigo, numa manjedoura, com apenas alguns trapos para se proteger do frio, perdeu-se na voracidade consumista. Mas ainda há quem estenda a mão a quem, pelas voltas da vida, se encontra despojado de tecto.
Numa das arcadas da Avenida Marquês de Pombal, em Leiria, Pedro e Conde trocam palavras sobre o sol que, momentaneamente, neste dia de quase Inverno, lhes aquece os corpos agasalhados em casacos com fechos corridos.
Partilham o lume para acender um cigarro e fazem uma pausa na conversa, olhos perdidos no movimento das pessoas que sobem e descem os passeios, alheias ao olhar de ambos. Vivem na rua e são utentes do Projecto Giros na Rua, da Inpulsar – Associação para o Desenvolvimento Comunitário, de Leiria, que trabalha para a melhoria das condições sócio-sanitárias e de saúde de pessoas em situação de risco.
Pedro, que conta que nasceu há 41 anos no hospital velho de Leiria, explica como irá ser a sua Consoada. Retira do bolso um telemóvel antigo de concha e, com um sonoro ‘ping’, abre a galeria.
Nela, estão várias fotografias do seu lar actual. Uma barraca de plástico azul que ergueu num pinhal junto ao casario, “algures em Leiria”. A guardar os magros pertences, deixou o seu grande amigo, o Tintim, um pequeno cão de pêlo branco encardido, de quem cuida desde cachorrinho.
“Passamos um bocadinho de frio, mas não é muito. Tenho de ter mantas. E, às vezes, chove porque o plástico está furado. Tem um buraco, mas colei-lhe fita-cola. Vai ser assim o meu Natal, o Ano Novo e o ano todo por aí fora.” Será um “Natal foleiro”. “Mesmo foleiro. Não quero participar nas coisas que estão programadas. Não há cá festas para ninguém.”
Neste Natal, no sapatinho, gostaria que o ajudassem a ter uma prótese dentária, confidencia de lágrimas nos olhos e a voz sumida, num nó na garganta. Sem orçamento para o luxo de ter dentes novos, pediu apoio à Inpulsar e a associação contactou várias clínicas dentárias, uma vez que não tem dotação para financiar o pedido de Pedro. O orçamento foi de 700 euros.
“Notámos discriminação, quando perceberam que seriam para o Pedro. Ele está numa fase muito estável, mas o passado vem sempre ao de cima. Percebemos que seria muito importante para a sua autoestima, melhoria na atitude, e sentir-se mais apresentável”, referem os responsáveis da Inpulsar, oferecendo-se para gerir eventuais donativos para a causa.
Em Leiria, Pedro é conhecido como “Pepito”, um nome que o deixa em nervos. Tira o Cartão do Cidadão de uma bolsa pendurada à volta do pescoço e aponta para o nome, escrito em caligrafia certinha e bonita: “Pedro José da Silva Gonçalves. É o meu nome!”. A mais bonita de todas as festas é o Natal Óculos escuros imaculados, cabelo e barba alvos como a neve, José Conde, vive por aí.
“Em Leiria, conhecem-me por “menino Conde.” Já foi feirante e é pai de seis filhos. “Corri o País a vender contentores de camisolas e fatos de treino, em romarias, feiras e festas, mas, desde pequeno que sinto que a mais bonita de todas as festas é o Natal. É uma noite para ser passada com a família.” Mestre nas conversas sem tempo e fonte de histórias de vida, no coração guarda as recordações de cachopo, quando a Consoada era feita com as quatro irmãs, à espera das prendas que o Menino Jesus deixava em sapatinhos adormecidos no borralho da lareira.
Na casa, nessa noite, ninguém dormia. “Tenho seis filhos. Quero que eles estejam bem neste dia com as mães. Não vou para casa de nenhum. Vou tentar isolar-me, no meu refúgio, e deitar-me com uma garrafinha de Vinho do Porto… Vai ser uma noite igual a outra qualquer e, no dia de Natal, vou dar um salto à cidade para ver a alegria das crianças e as decorações.” Por estes dias, José Conde dedica-se à pintura – naïf, pois claro – e gostaria de apostar na música, dando vida ao futuro melómano que as freiras do Colégio da Cruz da Areia, em Leiria, lhe previram quando era lá aluno.
“Neste Natal, de prenda, não preciso de nada. Já tenho muito. As pessoas têm de se lembrar de que a vida não é um dia apenas, mas uma colecção dos bons momentos que a gente passa… E dos maus também.”
Natal Inspulsar
O Natal é, supostamente, a Festa da Luz, da família e da renovação. Mas esse cenário idílico é, bastas vezes irreal, correspondendo a uma [LER_MAIS]construção da sociedade actual. “Somos impelidos a viver assim, mas nem todas as famílias são assim felizes e funcionais, nem as pessoas são tão acolhedoras”, sublinha Irene Tereso, coordenadora do Projecto Giros na Rua.
Não é apenas quem vive sem-abrigo que não se identifica com este cenário. Muitos outros não encontram pontos de contacto com essa imagem-modelo. “Também para quem está em lares, centros de acolhimento, prisões e mesmo na porta do lado, estes dias são difíceis”, diz a responsável.
A Inpulsar dá algum apoio nesta data com uma festa de Natal, na sexta-feira, dia 20, com a participação de pessoas que participam nos quatro projectos sociais da associação – Giro Ó Bairro, Giros na Rua, Redes na Quint@-E6G e Sob o mesmo Céu – e, no dia 5 de Janeiro, haverá um segundo momento de celebração, desta vez, do Dia de Reis.
“Houve voluntários que nos contactaram para desenvolver uma actividade e percebemos que, após o Natal, quando o espírito solidário está mais intenso, fica um vazio. E as problemáticas com que lidamos duram 12 meses por ano e não são específicas desta altura do ano. Por isso, empurrámos as festividades até Janeiro, para o nosso público.”
No Giros na Rua, estão incluídas 16 pessoas referenciadas em situação de sem-abrigo mas Irene Tere- so diz que, na cidade de Leiria, poderá haver mais que não estão identificadas. “Estar-se sem abrigo pode ser uma situação temporária, devido a situações penalizadoras momentâneas. De forma generalizada, os sem-abrigo de Leiria, a quem prestamos apoio, revelam situações de patologia mental ou consumos de drogas ou álcool.
Sendo o álcool o consumo mais comum na rua, porque é a droga mais barata e legal, que as pessoas sentem que os ajuda a passar as noites frias e a perder-se num torpor de esquecimento”, explica a técnica. Há quem tenha passado toda a sua vida na rua, sem condições habitacionais, sendo que esta acaba por ser a única forma de se verem como indivíduos.
Mas há também quem esteja momentaneamente nesta situação e que, ao fim de algumas semanas consegue regressar à vida normal. “Quanto mais tempo se está assim, mais difícil é sair. Por se ganharem hábitos e por se ficar menos apelativo para uma oferta de trabalho”, admite.
A maioria dos sem-abrigo teve vidas relativamente “normais”, até que, a dado momento, algo provocou neles uma descompensação e questões mentais. E esses episódios podem ser choques traumáticos, uma morte, desemprego, divórcios ou até um desgosto amoroso.
Consoada na Quinta das Silveiras
Desde há cinco anos, que cerca de 40 utentes do Centro de Apoio de Leiria (CAL) passam a Consoada na Quinta das Silveiras, nos arredores de Leiria, no âmbito de uma iniciativa da Associação de Solidariedade Social Colina do Castelo.
Uma vez que o CAL encerra portas na véspera e no Dia de Natal, muitas pessoas não têm onde recorrer para receber o pão de cada dia, pelo que a associação tentou colocar de pé uma alternativa e contactou a responsável pelo centro de acolhimento, Edite Tojeira, que acolheu a ideia.
“Foi uma ideia que surgiu durante uma reunião da Direcção da Colina do Castelo”, explica a vice-presidente, Catarina Gil. Com o apoio do Centro Pastoral Paulo VI, os utentes são levados para o salão de eventos da quinta, que é cedido pela empresa Iguarias do Tempo, onde lhes é oferecida a ceia de Natal.
“Temos vários apoios de particulares e de empresas”, refere a advogada e vice-presidente da associação que, este ano, como sempre, irá levar a família passar a Consoada com os utentes do CAL. Não será a única.
Alguns colegas do escritório, amigos e funcionários da Quinta das Silveiras farão o mesmo. Catarina Gil refere que, nestes anos, o jantar tem tido, além, do apoio da quinta, o contributo dos restaurantes O Paulo e Aromas, que fornecem as refeições e as bebidas.
“O Pingo Doce também nos ajudou a preparar um cabaz de Natal para oferecermos.”