Chegada de umas miniférias no mundo, mas ao mesmo tempo a sentir-me desligada dele, da parte dele que é só minha, li esta frase: “somos o resultado dos livros que lemos, das viagens que fazemos e das pessoas que amamos”.
Ora, trago esta afirmação aqui porque se inicialmente a achei uma maneira bonita de dizer uma verdade, dei comigo, logo a seguir, a considerá-la uma frase (quase) publicitária e por isso, apenas sedutora, mas completamente oca!
De facto, ao longo da minha vida tenho percebido que o resultado de lermos muitos livros, de fazermos muitas viagens e de amarmos alguns dos outros, tudo isto não influencia, nem um bocadinho, a nossa personalidade, enfim, a nossa maneira de ser e de nos comportarmos. É bem mais atrás que o que somos se forma, uma vez que ele resulta do processo e dos objetivos utilizados pela família e pela escola para lapidarem, nos primeiros anos da nossa existência, o nosso caráter.
Como sabemos, as nossas motivações são geradas pelas necessidades que queremos ver [LER_MAIS] satisfeitas e a leitura de muitos livros e autores, de inúmeras viagens e de “bons” relacionamentos podem, por isso, destinar-se a satisfazer necessidades bem diferentes.
Por exemplo, só para nos mostrarmos aos outros como fazendo parte de uma elite sociocultural ou, com uma outra finalidade, para percebermos, do espetro das obras e dos comportamentos humanos, a beleza que queremos replicar ou a fealdade que rejeitamos, contra a qual nos dispomos a lutar e de que nos queremos afastar.
Sim, eu não acredito que foi por ter lido muitos livros ou ter feito muitas viagens que o jovem do Mali, Mamoudou Gassama, de vinte e dois anos e imigrante ilegal em França, se tenha posto emrisco de vida ao escalar num prédio, vários andares, para salvar uma criança pendurada numa varanda!
Da mesma forma, também não acredito que tenham sido os livros lidos ou as viagens feitas por tantas pessoas “cultas” que eu conheço os causadores da rejeição que nutrem pelos refugiados africamos que rumam à Europa!
Por pensar assim, dou comigo a muitas vezes a ter de relativizar o poder que para a evolução da comunidade traz a leitura de livros e de viagens. Para mim é no tipo e no valor das necessidades que cada um quer satisfazer quando lê livros, viaja ou escolhe a quem amar, que reside ou não a mais valia social, cultural e afetiva dessas atividades humanas.
Digamos que enquanto a leitura de um livro por parte de um “passeur”, como diz Daniel Pennac na sua magnífica intervenção partilhada pela nossa vereadora da educação, Anabela Graça, no Facebook, me dá algo de bom e me acrescenta valor, ao contrário, este comentário – “por causa dos emigrantes africanos e árabes a Europa está a perder a sua identidade”- que ouvi a uma pessoa muito religiosa e tida como da elite sociocultural na sua comunidade, nada me dá para além de uma profunda tristeza.
Acho-me por isso no direito de discordar da afirmação que inicialmente registei. Não, nós não somos o resultado dos livros que lemos, das viagens que fazemos e das pessoas que amamos.
Nós somos! Os livros, as viagens e os amores são apenas ferramentas valiosas que escolhemos para lapidar, para o bem ou para o mal, a nossa humana construção.
Professora
Texto escrito de acordo com a nova ortografia