Ao sair de infância
Não detivemos a pedra: um pássaro ferido;
não calamos o medo: um rasgão na pele
Não restituímos à luz a serenidade.
É certo que respirávamos
Abríamos as mãos
Esperávamos a noite diante de um livro muito sublinhado.
Até que alguém interrompendo o silêncio
abria a porta do quarto
e dizia: «já que não sabes rezar bebe ao menos um copo de leite
antes te e dar ao sono.
Jorge Gomes Miranda, Curtas-Metragens, Relógio d’Água, 2002
Em 1999 quando lançava um dos seus primeiros livros de poemas dissera-me, à porta da editora, que só se compreende o sentido absoluto do amor depois das primeiras grandes perdas. Já não tinha os pais, nem a madrinha que o criara, e já então eu tinha a minha mãe doente.
Só em 2005 viria a compreender o alcance daquilo que me disse naquele dia. Em Novembro.
A minha mãe sucumbiria naquele mês à doença. Longa, surda e injusta. A mesma de sempre. Aquela que “te minga até a identidade e que te reduz a um nódulo de ti mesmo”*.
Seis dias depois nascer-me-ia o primeiro filho. Um calendário sem contemplações a provar-me que a ironia se revela no acaso e que a crueldade convive impassível junto da alegria.
A sua ausência fez com que as dúvidas inconfessáveis da aprendizagem de uma primeira maternidade fossem engolidas à força e deixou-me sem a toca da intimidade que nos reconhece os medos e que nos pressente [LER_MAIS] os sentimentos sem nome.
A convalescença de um parto violento e a fragilidade decorrente da doença assinalam o valor de quem te narra, em actos, a história de vida. A posição certa da almofada junto ao pescoço, a intensidade da luz que te evidencia o angulo mais bonito mesmo quando a palidez e o esgotamento físico apenas transmitem a linguagem perecível da carne ou o relato daquele particular episódio da infância que te lembra que, sendo mãe, ainda respondes pelo nome de filha. Tudo isso levou ela consigo em Novembro.
O histórico que se perde com as grandes ausências, disse-me ele em 1999 junto à editora, recupera-se em parte quando se experimenta o valor absoluto do amor.
Talvez ele já não transporte em si mesmo o património biográfico do conhecimento da posição exacta da almofada junto ao ângulo do pescoço ou a percepção da dimensão do medo de que a perecibilidade do corpo e o acaso imperturbável dos dias te contaminem a identidade.
Talvez se revele mesmo só nesses brevíssimos instantes em que sendo tu já o único narrador dos teus dias há quem, num encontro, te dê a rara oportunidade de ser co-autor de um património de ausências cúmplice.
*citação de um texto José Rodrigues da Silva, editor do Jornal de Letras, publicado pelo jornal em 2008.
Assessora de imprensa