Camisola azul bebé vestida, sacola ao ombro e um largo sorriso no rosto. As voluntárias da Associação Nuvem Vitória começaram a surpreender as crianç as e adolescentes que estão internados no ser viço de Pediatria do hospital de Santo André, unidade do Centro Hospitalar de L eiria, no final do mês passado.
Às 20:30 horas em ponto entram no serviço e vão contar histórias de adormecer, anedotas, adivinhas ou curiosidades. São os utentes que mandam. O objectivo é simples: promover o bem-estar e conforto de quem está a recuperar de uma doença, tentando fazer esquecer, por momentos, o local onde se encontram.
Ana Carvalho, Joana Bernardes, Rosário Oliveira e Teresa Faria foram as 'nuvens' que o JORNAL DE LEIRIA acompanhou na quinta-feira. Quatro de um grupo de 80 do núcleo de Leiria.
“O voluntariado é algo muito positivo. É o nosso grãozinho para ajudar a tornar o mundo melhor. Contribuímos para proporcionar bons momentos num espaço diferente, como o ambiente de um hospital”, afirma Joana Bernardes, terapeuta de acupunctura.
“Levamos muito, mas vimos de coração cheio e, por vezes, com lágrimas de felicidade nos olhos”, acrescenta Ana Carvalho, educadora de infância, ao salientar o prazer que lhe dá ver os sorrisos que conseguem roubar e o carinho que lhes é dado pelas crianças e famílias. “Mesmo aqueles que não querem ouvir histórias, só ver o seu sorriso já é uma lufada de ar fresco.”
Teresa Faria, empregada de escritório, afirma que “qualquer sorriso” que leva consigo para casa já lhe enche a alma e a faz “sentir nas nuvens”. Esta voluntária perdeu um filho com 26 anos, vítima de cancro. Garante que é uma ‘nuvem’ porque o seu filho a “empurrou”.
Depois de um período em que tinha dificuldade em estar com crianças, porque apenas via nelas o seu “sofrimento” e a “dor” dos pais, Teresa Faria mudou de atitude quando um bebé lhe abriu os braços a pedir colo. “Sei que foi uma mensagem do meu filho”, diz com os olhos brilhantes.
O serviço de Pediatria recebe crianças até aos 18 anos. Os mais velhos não estão tão receptivos a ouvir histórias de embalar, mas muitos aceitam o desafio das anedotas ou curiosidades. “Sabes quantas variedades existem de arroz? Cerca de 100 mil.” Marco Reis, 15 anos, ficou surpreendido com o que ouviu. “E logo eu que gosto tanto de arroz”, retorquiu às 'nuvens' que o visitaram no quarto, onde estava acompanhado da mãe.
O jovem aplaude a iniciativa: “É muito didáctica. Fiquei a saber coisas diferentes e ajuda a passar o tempo.”
A educadora residente da Pediatria, Ana Paula Correia, revela que as voluntárias esc alonadas para o dia são informadas do número de [LER_MAIS] crianças, idades e referências relevantes, como não ter pais ou ter sofrido algum trauma específico.
“Desta forma, sabem que há assuntos que não devem abordar e terão isso em atenç ão na escolha da história que irão contar.”
E as histórias podem também ajudar a quebrar barreiras e até a ultrapassar problemas, como uma criança que tenha dificuldade em alimentar-se. Rosário Oliveira, professora, salienta que os livros ajudam a apelar à “criatividade” das crianç as e é uma forma de “promover a leitura”.
"Custa-me ouvir que haja pais que nunca contaram uma história aos filhos. Se conseguirmos contribuir para que isso mude, já é positivo.”
Emanuel Resende, pai de um menino que aceitou ouvir uma história, considera que é mais uma iniciativa que “ajuda a tirá-los do telemóvel”.
“O meu filho e este menino [outro utente] estão lado a lado e estiveram durante o dia a jogar um com o outro no telemóvel. Comunicam via tecnologia. É a geração deles, mas é importante terem tempo para outras coisas, como ler ou contactar com a natureza”, afirma, garantindo que contar histórias fez parte da infância dos filhos.
Emanuel Resende acrescenta que se “fala mal do Serviço Nacional de Saúde, mas é tudo excelente, sobretudo, para um serviço que é gratuito”.
Os voluntariados têm uma série de regras. “Não podem perguntar aos adolescentes ou aos pais qual a doença, não podem revelar com que criança estiveram, tendo em conta as infecções associadas aos cuidados de saúde, sabem como devem lavar as mãos antes e depois da visita e não podem tocar em nenhuma criança”, afirma Bilhota Xavier, director do serviço de Pediatria, acrescentando que é também pedido o registo c riminal.
Essas regras estão bem interiorizadas. Ao chegarem junto das crianç as, as voluntárias informam que não lhes podem tocar, nem passar o livro para as mãos. Têm de ouvir e ver as imagens à distância.
Boa higiene do sono
O projecto da Associação Nuvem Vitória iniciou-se em 2016, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. “Tem a particularidade de contribuir para a boa higiene do sono, um dos problemas que se têm vindo a agravar”, constata Bilhota Xavier. O director da Pediatria de Leiria salienta que as histórias contadas “desenvolvem o espírito de sonhar, a criatividade favorecem o adormecimento das crianças que estão fora do seu ambiente de conforto”. O clínico lamenta que haja pais que “nunca leram uma história ao seu filho”. “Além da vantagem de poder adormecer, sonhar com coisas agradáveis e levar os medos para outros lados, esta iniciativa favorece a ligação pais/filhos.