Neste jogo, as tarjas e mensagens de apoio visíveis nas bancadas não eram dirigidas às séniores do SIR 1.º de Maio, que já tinham consumada a descida à 2.ª divisão nacional, ou ao Gil Eanes, confortável no principal escalão. Eram mesmo para a terceira equipa em campo, a dupla de árbitros Ivan Caçador e Eurico Nicolau, que naquela tarde de sábado se despediu do apito.
Foram 25 anos de parceria dentro de campo, mas que começou antes desta carreira no andebol. Ivan e Eurico são “dois garotos de Picassinos” que andaram juntos na escola e começaram a jogar no SIR 1.º de Maio. Um professor levou-os para o mundo da arbitragem e, em 1999/2000 começou a história de uma dupla que percorreu a Europa, foi reconhecida várias vezes pelas federações e pisou os maiores palcos do andebol.
À chegada ao pavilhão municipal da Marinha Grande, começaram os abraços e os sorrisos, com a presença de amigos e familiares que não podiam perder aquele momento. As lágrimas caíram logo à entrada do balneário, quando um jovem árbitro prestou uma primeira homenagem e entregou uma recordação em vidro, passando a mensagem de que o legado de Eurico e Ivan é uma referência para os mais novos.
Já se esperava um jogo repleto de emoções. “Não é uma tristeza, é uma felicidade enorme por termos trilhado este caminho juntos e só podemos estar orgulhosos daquilo que o andebol nos deu e daquilo que conseguimos fazer com o que nos deram. Saímos de cabeça erguida, como entrámos, com a espinha dorsal mantida”, confessou Ivan Caçador, momentos antes de trajar, pela última vez, o equipamento oficial de árbitro.
Um quarto de século lado a lado deixa inúmeras memórias, mas quando lhes é pedido para escolher um momento especial, ambos falam da nomeação e presença na final four da Liga dos Campeões, em 2013. “É, sem sombra de dúvidas, um daqueles momentos que dizemos que estivemos lá e que lutámos durante muitos anos para conseguir atingir”, afirmou Eurico, ao mencionar que sempre foram a dupla de árbitros mais nova em campo.
“Chegámos em 2007 ao Mundial feminino e o outro patamar, o Mundial masculino, foi em 2009, na Croácia. Éramos sempre os mais novos. Algumas das oportunidades também não surgiram devido à tenra idade.”
Ainda assim, a carreira sorriu a estes dois “mulas”, uma alcunha que os acompanha desde o início. Quando começaram, António Goulão e José Macau eram as grandes referências e eram apelidados de “mulas”. “Começámos a ser os mulinhas”, conta Eurico, demonstrando a proximidade entre os árbitros de andebol. A carreira destes marinhenses evoluiu e, do diminutivo, começaram também eles a receber esta alcunhas, um sinal de reconhecimento.
Prova deste reconhecimento é, também, o próximo capítulo na carreira destes juízes, porque a separação do andebol já é impossível.
Desde o início de Abril que Eurico Nicolau integra os quadros da Federação Europeia de Andebol (EHF, sigla em inglês) e é responsável pela organização das competições de andebol de praia. Recebeu o convite – irrecusável – para trabalhar em Viena, fruto também do trabalho já desenvolvido em Portugal, que obteve destaque junto da organização europeia. Esta função é, no entanto, incompatível com a função de árbitro, o que acelerou o término da carreira.
Por sua vez, Ivan Caçador também ambiciona manter a ligação à EHF enquanto delegado. Para já, exerce estas funções em Portugal, até cumprir o período de carência a que o cargo europeu obriga. Quando houver novas vagas, voltará a candidatar-se para poder ser o representante da federação nos jogos e, além de assegurar que tudo corre bem, avaliar os árbitros e dar-lhes o apoio necessário. Surgiu, também, o convite para ser expert em regras, ou seja, acompanhar os árbitros candidatos aos quadros europeus, uma espécie de mentoria para profissionais que, tal como ele, querem subir mais um degrau na carreira.
Arbitragem é uma família
Aos mais novos, estes dois amigos asseguram que entrar na arbitragem é fazer parte de uma família onde o andebol é uma paixão. “Manter os árbitros é difícil. Mas no momento em que entram e conseguem ver este lado da família dos árbitros (…), uma família que trabalha muito em conjunto e onde temos de dar um bocadinho uns dos outros para conseguir chegar a algum lado, essa é a parte motivadora”, garante Eurico, ideia subscrita por Ivan, que acrescenta: “O estímulo financeiro nunca vai existir nesta modalidade. Quem vem para aqui já é um amante do andebol, já sabe que o andebol tem um espírito completamente distinto.”
Na última entrada em campo, no passado sábado, a dupla foi também homenageada pela Associação de Andebol de Leiria. O jogo decorreu de forma tranquila, e no soar do apito final, ouviu-se uma ovação de pé que ecoou pelo pavilhão, seguida de abraços e lágrimas de alegria partilhadas com quem quis ver, uma última vez, o espectáculo da arbitragem.