Foi uma sexta-feira diferente aquela que os portugueses e os leirienses viveram a 25 de Abril de 1975. Após vários adiamentos, as eleições para a Assembleia Constituinte realizavam-se, finalmente, para escolher os 250 deputados que iriam elaborar e aprovar a Constituição, naquele que foi o primeiro sufrágio livre.
Conscientes do momento histórico que estavam a viver, os portugueses e, claro, os leirienses, mobilizaram-se para participar na “festa da democracia”, a expressão mais usada pelas pessoas ouvidas pelo JORNAL DE LEIRIA para descrever esse dia. A mobilização foi tal que o nível de votação (91,66% no País e 90,33% no distrito) nunca mais foi igualado.
Em Leiria, o dia acordou com uma temperatura “amena” e “sol esperto e criado”, como descrevia o jornal O Mensageiro. As urnas abriram às 8 horas e logo se começaram a formar longas filas. O cenário repetiu-se em todo o distrito e no País. Em alguns casos, os eleitores esperaram horas, sem, no entanto, haver registo de distúrbios.
Melhores trajes saíram à rua
“As eleições constituíram uma verdadeira festa vivida em uníssono. Muitos eleitores, fizeram questão de vestir os seus melhores trajes e afirmar o grande contentamento”, recorda José Luiz Silva, que, à época, dirigia o jornal Gazeta das Caldas (GC). Antigo professor e jornalista, conta que “às primeiras horas da manhã”, antes mesmo da abertura das urnas, em Caldas da Rainha “já se formavam extensas filas para votar, como se tal não fosse possível fazer ao longo do dia”.
Uma “pressa de concretizar aquele voto”, aponta o ainda director do GC, que relata também o ambiente que se vivia nos “corredores” das mesas de voto, onde circulavam “responsáveis locais, mirones e até militares que fizeram o 25 de Abril fardados, que acompanharam atentamente aquele dia, todos com um sorriso nos lábios”, confiantes que “havia mesmo uma festa da democracia nascente”.
“Foi um dia excepcional, de alegria tamanha”, reforça Álvaro Órfão, que tinha ainda “bem vivos na memória” os acontecimentos das eleições de 1973, quando a polícia “carregou com cacetada de meia-noite” sobre as pessoas que se concentraram em frente à Câmara da Marinha Grande, em apoio à decisão da oposição de, como forma de protesto, não participar nesse sufráfio.
Dois anos volvidos, o ambiente era bem diferente. “Via-se a alegria estampada nos olhos das pessoas. Finalmente, podíamos votar livremente”, recorda o antigo presidente da câmara marinhense, que, na sequência das eleições de 1975, foi empossado deputado à Assembleia Constituinte por Leiria, em representação do Partido Socialista. “Eu era o sexto da lista, mas o Jorge Campinos [número um] não assumiu o lugar”, explica Álvaro Órfão que, das primeiras eleições livres recorda, além das filas “imensas”, o esforço do pai, “já doente”, para ir votar.
O socialista destaca ainda a alegria “redobrada” pela vitória do PS no País e na Marinha Grande. “Foi uma explosão de alegria, pela constatação de que a população estava mais do nosso lado do que do deles [PCP].”
Mais do que os resultado eleitorais, foi a participação “em massa” que mais marcou Isabel Afonso. A antiga presidente da Junta de Marrazes, Leiria, era, então, uma jovem professora primária, de 20 anos que, como tantos, ia votar pela primeira vez. Fê-lo em Alcobaça, numa “alegria esfuziante”. Recorda-se de ter votado ainda de manhã, acompanhada de outros colegas, e de sentir nas ruas “um ambiente mágico.
“As eleições foram vividas como um grito de liberdade. Mais um direito conquistado pela Revolução estava consumado”, assinala a antiga professora e autarca, frisando, no entanto, que as pessoas “estavam ainda a aprender a viver como as ferramentas da liberdade”. Pelo que, “havia ainda quem sentisse medo de falar abertamente sobre política”.
A poucos quilómetros de Alcobaça, na Cela, Rogério Raimundo presidiu a uma das duas mesas de voto instaladas no edifício da Junta. Foi aí que acorreu gente de todos os lugares da freguesia, muitos levados por familiares e vizinhos e até pelos partidos. “Houve uma mobilização geral, para levar todos a votar”, conta o antigo vereador da CDU na Câmara de Alcobaça, referindo que essa mobilização também fez com que chegassem aos locais de votação pessoas com certas incapacidades acompanhadas por familiares que pensavam que podiam votar por elas.
“Foi a parte mais aborrecida, o dizer que ninguém podia votar por ninguém.” E, se na Cela essa recusa não trouxe problemas de maior, noutros pontos do concelho motivou alguns “empurrões e ameaças” aos elementos da mesa. “Em Turquel, terá havido até uns socos.”
Já em Leiria, Acácio Sousa não se recorda de qualquer incidente, com a votação a fazer-se na câmara, num ambiente de “grande entusiasmo”. “Houve 16 secções de voto. Apesar das grandes filas, tudo decorreu com normalidade”, aponta o historiador e deputado do PS na Assembleia Municipal, que destaca o trabalho “extraordinário” das comissões administrativas das freguesias e das equipas de recenseamento.
“Não tinham qualquer calo nesta função. Viram-se confrontadas com muitas dúvidas, mas conseguiram ultrapassar essas questões e mobilizar a população para o recenseamento e para a votação”, assinala.
Também em Pombal, a mobilização foi geral. Alfredo Faustino, jornalista regressado de Moçambique no pós-25 de Abril, estava, então, sem emprego, mas colaborava com o jornal local O Eco. Votou “pelas 9 horas”, após ter estado “cerca de meia hora na fila”. Depois, juntamente “com dois amigos” e na qualidade de colaborador do jornal, percorreu o concelho, testemunhando a “enorme afluência” às urnas, “não só nas zonas urbanas, mas principalmente nas área rurais”.
“Vi grandes aglomerações de eleitores, de cabelos brancos, felizes por estarem a ‘ajudar a construir um país novo’. Este contacto “com a população rural, mais idosa, as conversas que fomos trocando, foram aspectos que nunca esqueci”, recorda.
O antigo jornalista diz também ter sentido, sobretudo nos meios mais rurais, que muitos dos populares, que “aguardavam pacientemente em filas intermináveis”, não tinham a noção do papel que estavam a desempenhar. “A grande maioria votava sim contra a ditadura e contra o comunismo, influenciada pelo ‘senhor pároco’”, aponta, classificando essas eleições, as primeiras em que votou, como um “momento inesquecível”.
Eleições mais participadas de sempre ainda sem sufrágio universal
As eleições de 1975, que elegeram a assembleia que elaborou e aprovou a actual Constituição, foram as mais participadas de sempre, com a abstenção a ficar abaixo dos 10%, no País e no distrito. Houve 14 forças políticas a concorrer, com o Partido Socialista a vencer, com 37,85% dos votos. No distrito, a vitória sorriu ao PPD/PSD, o que aconteceu em 16 das 17 eleições seguintes para a Assembleia da República, sendo que o PS apenas ganhou neste círculo eleitoral em 2022, com uma lista liderada por António Sales.
Nas primeiras eleições – e até 1995 – o distrito elegeu 11 deputados, cinco pelo PPD/PSD, que conseguiu 35,57% dos votos, outros cinco pelo PS, que teve 33,19%, e um pelo CDS-PP, com 6,76%. O PCP foi a quarta força mais votada no distrito, mas não elegeu qualquer deputado, o que conseguiu nas cinco eleições seguintes (como o PCP em 1976 e integrada na Aliança Povo Unido – APU nas restantes) e sempre com o mesmo deputado, Joaquim Gomes, resistente anti-fascista da Marinha Grande.
As primeiras realizadas em democracia, as eleições constituintes não foram ainda de sufrágio universal. “A própria legislação eleitoral impunha um conjunto de incapacidades cívicas, deixando de fora aqueles que tinham colaborado com o regime anterior, desempenhando cargos de relevo”, esclarece Acácio Sousa, historiador, que acaba de escrever uma separata sobre as eleições de 1975, a incluir nos Anais Leirienses – Estudos e Documentos, em co-autoria com Carolina Henriques Pereira.
Nessa publicação, são também assinaladas as restrições impostas à votação dos emigrantes. “Só se poderiam recensear aqueles que tinham família em Portugal ou que tivessem emigrado há menos de cinco anos”, lê-se no documento, segundo o qual esta era um das questões que mais dúvidas suscitava às comissões de recenseamento. E as dúvidas eram tantas que, a determinada altura, o governador civil, Joaquim Rocha e Silva, sentiu-se “verdadeiramente assediado” com tanta pergunta e, face a isso, “dava os contactos do Departamento Político e Eleitoral do MAI [Ministério da Administração Interna] por se sentir incapaz de responder a tudo”.
Contexto de “conflitualidade”
Acácio Sousa, então com 24 anos, destaca ainda o ambiente “intenso” que antecedeu as eleições, com confrontos “violentos entre grupos de direita e extrema-direita e de esquerda, como o PCP e mais à esquerda”.
“Era um ambiente de grande conflitualidade”, reforça José Augusto Esteves, militante do PCP, lembrando que, antes das eleições, houve duas tentativas de golpe de Estado (28 de Setembro e 11 de Março) e havia “uma grande instabilidade no Governo”.
Nos três meses anteriores às eleições “desenvolveu-se uma enorme campanha anti-comunista, protagonizada pelo CDS e PPD, que nos acusavam de quer tomar o poder e de recusarmos eleições”, diz José Augusto Esteves, alegando que esse clima criou “dificuldades” à campanha eleitoral.
“Fui a sessões de esclarecimentos em que quase não pudemos intervir. Boicotavam-nos com barulho e chegaram a furar-nos os pneus”, conta, referindo ainda a dificuldade do PCP em ter representantes em todas as mesas de voto.
Apesar do contexto, as eleições decorreram em ambiente de festa. Mas o clima de conflitualidade intensificou-se nos meses seguintes, com uma sucessão de incidentes entre defensores das diversas facções. É o chamado Verão Quente de 1975, durante o qual se registaram os ataques às sedes do PCP e de outros partidos de extrema-esquerda.