Há coisas muito difíceis de explicar porque são um deserto carregado de desconhecido que nos invade, e nos divide entre a ânsia desmesurada por uma normalidade salvadora e a espera despedaçante e paulatina pela chegada do momento terminante depois do qual a vida terá necessariamente que mudar.
É assim que por entre o susto e a incredulidade se consegue pensar num jogo de futebol, apiedar de lágrimas alheias, beber um chá a conversar banalidades, falar da inflação com o funcionário da estação de serviço, ou dar uma aula com a mesma inteira disponibilidade.
Há coisas muito difíceis de pensar porque significam um nunca acabar de nunca mais que para sempre nos abrirão buracos na vida impossíveis de cerzir, e nos deixam em demasiados momentos a sobrar, quase inúteis, como uma meia perdida do par. É assim que se pensa em como voltar a chegar a casa, como cumprir o ritual de sábado, o que fazer à cumplicidade de uma graça antiga, ao programa de televisão dos dois, aos telefonemas, e ao que soa o nosso nome dito por aquela voz.
Há coisas muito difíceis de entender porque são demasiado grandes para nos caberem no tamanho do peito.
É assim que pensamos no nosso mundo depois do dia último, sabendo que será exactamente o mesmo mas que nunca mais será igual, sem sabermos como será então; é assim que olhamos um cadeirão vazio, e o quarto, e a janelas da casa vistas da rua, e a cadeira de jardim arrumada junto ao guarda sol, e o cinzeiro de toda a vida, o sobretudo, os óculos, o livro, a cama, e nos concentramos na vacilante existência de quem os deveria ocupar, para que assim a presença possa ainda pertencer ao lugar, ao objecto para que assim a presença ainda não se esvaia, embora já não possa lá voltar.
É importante falar da morte antes de acontecida, antes das saudades e das lágrimas, antes das lembranças à tona das conversas, antes do dia em que a vida muda, necessariamente, sem que quase nada vá parecer ter mudado.
É importante falar da morte enquanto ainda há uma vida a acontecer devagarinho, enquanto o coração é só aperto disfarçado na atitude e na acção, enquanto se guardam desveladamente todas as palavras, todos os olhares, e todos os pequenos gestos, enquanto ainda se sente o calor e o cheiro da pele, enquanto ainda se pode dar a mão, enquanto a nossa voz ainda pode ser ouvida a dizer o quanto se ama, enquanto ainda é tempo de se ser dois.
É importante falar do inevitável que tanto desejamos ignorar, para termos tempo de o ir compreendendo e aceitando até que o caminho chegue ao dia último, e a cratera que então se abra possa encher-se, um pouco, com paz.
Num quarto espaçoso, tranquilo e iluminado, o “nós” deste escrito sou eu, e o outro dos dois é o meu Pai. As horas, os dias que ainda houver, serão o lento desvendar de um mistério, serão uma aprendizagem silenciosa, serão uma partilha dura, serão um completar de quem sou, e serão a mais dolorosa certeza do amor e da vida.