Meu Caro Zé,
Perante as convulsões sociais que, agora, em Portugal, apesar da “geringonça” (ou será por causa dela?) avassalam a sociedade portuguesa, em que as “corporações” pedem contas a quem tanto prometeu, veio-me à lembrança um pequeno extrato de um livro de uma escritora, também professora do ensino secundário, Isabela Figueiredo que, no seu livro A gorda, escreve:
“O tempo passa, o ano letivo corre. Trabalho a mais, sempre mais do que é devido e se pode suportar. A maior parte das vezes para nada. Testes, fichas, folhas de Excel, metas, planificações, papéis, relatórios, projetos e atas que levam dias a preencher e nunca ninguém lerá. Trabalho kafkiano. Não-trabalho. Visitas de estudo. Atividades na escola. Longas reuniões constantes sobretudo, cuja conclusão é nada. Essência do vazio.”
E as aulas, ou seja, os “tempos de contacto” entre os professores e os alunos?
Do que vejo no texto, que, tanto quanto me é dado observar, é posição partilhada por muitos professores, só as visitas de estudo correspondem a este objetivo.
Mas a escola não é exatamente um espaço para esse encontro? Não existe? Ou será que o professor que faz esta avaliação e se queixa do vazio não se queixa dos tempos de contacto, nem dos alunos, mas de tudo aquilo que impede esse contacto e, portanto a valorização do aluno, que é também a valorização do professor, e, consequentemente, da sociedade?
Então, no caso dos professores, e sem discutir a legitimidade de uma luta pelo que acham ser os seus direitos (tal como os de outras corporações), não faria mais sentido protestar, previamente, pelo conteúdo do “trabalho” (no texto, de facto, o “não-trabalho”!), para que a sua “luta” seja mais bem atendida e aceite pela sociedade?
Os professores dirão que a culpa não é deles, mas da organização [LER_MAIS] que lhes impõem.
Mas, então, não se devem revelar contra essa organização? E essa rebelião não deve ser prévia àquela em que hoje se envolvem?
E quais são as principais vítimas das convulsões que estas greves provocam: os professores? As famílias? O governo? Quem? Fala-se de diálogo de surdos, mas eu questiono antes a ausência do importante tema do diálogo, aquele cuja solução interessa à sociedade, que somos todos nós!
E é aí que eu invoco um extrato de um notável livro do Prémio Nobel, Iva Andric, A Crónica de Trevnik, a propósito da incompreensão do Cônsul Francês (no tempo de Napoleão), que achava que tudo devia ser lido através dos interesses exclusivos da França, relativamente à posição de um seu jovem colaborador:
“Ao contrário dele (do cônsul) des Fossés (o jovem) analisava todas as ocorrências com uma objetividade que assombrava Daville (o cônsul), tentando encontrar nestas os motivos e as explicações da sua oposição, sem tomar em conta os prejuízos ou benefícios, vantagens ou desvantagens que ele ou consulado retiravam nesse momento.”
Onde estão os “des Fossés” nesta turbulência?
Até sempre,
*Professor universitário
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990