«A narrativa da doença e é importante no meu oficio saber ouvi-la, só é bem entendida quando já se escutaram outras vozes, na ficção, na filosofia ou na poesia, que ajudam a apreender o seu sentido mais profundo, oculto tantas vezes nos interstícios de um discurso que tanto pretende revelar, como ocultar.
De facto, o encontro singular da clínica é feito de palavras mas, não raramente, também da eloquência de um silêncio igualmente revelador.
No prefácio do meu primeiro livro, Um Modo de Ser, escrevi que era outra a medicina quando praticada por médicos cultos. Referia-me, naturalmente, não à erudição médica mas à cultura das humanidades (…).
É possível que a minha impaciência seja apenas manifestação das desilusões fisiológicas da idade, mas a verdade é que não encontro nos médicos das novas gerações o mesmo vibrato emocional que me animou toda a vida, talvez por desconhecerem os dialectos do sofrimento, ou por recearem mergulhar num mundo de emoções que só vagamente vislumbram ou, ainda, penetrarem no íntimo de uma solidão tão unicamente humana.»
João Lobo Antunes, «O Consolo das Humanidades» in Ouvir com Outros Olhos, Gradiva, 2015 Virginia Woolf, num ensaio intitulado Sobre estar doente, sublinhava que a doença não é um assunto popular na literatura por ser quase impossível transmitir o que é estar doente.
A doença, como afirma, prefere a solidão e exige não só «uma nova língua, mais primitiva, mais sensual, mais obscena, mas também uma nova hierarquia de paixões.»*
Testemunhei processos de doença desde muito cedo. De pessoas muito próximas e de alguns amigos cuja ausência de futuro me trouxe cedo a consciência do efémero, da derrota do corpo, da impotência perante [LER_MAIS] o sofrimento e de que o amor face à ausência de resposta da medicina, no limite, ainda que console, não consegue salvar vidas.
À cabeceira da cama do hospital, os objectos favoritos junto à mesa estritamente prática que serve as refeições, o doce preferido e o livro para ler em voz alta nas horas de vigília, nunca transcenderam a sua função paliativa quer para quem chega (saudável) quer para quem permanece internado no hospital.
Nas longas horas de silêncio em que o verdadeiro diálogo (ou duelo) se estabelece entre o corpo internado, os soros e a doença que contamina, a dúvida que persiste em quem testemunha, acerca do que fazer, dizer ou como estar, funda-se apenas em aproximações imprecisas como o afecto e a memória do que pode consolar.
Não foram raras as vezes que, à passagem fugidia do médico junto à porta da enfermaria, apelei a essa sua competência de tradutor do insondável idioma das doenças para que, em convergência, pudesse tornar-me numa testemunha mais útil, ou para que apenas me dissesse que continuasse a ler em voz alta mesmo quando contaminação parecesse estar a ganhar o duelo.
Não foram também raras as vezes em que, no assomo à porta, as respostas foram lacónicas e até crípticas. Na literatura o bom desempenho do tradutor não se reduz apenas ao conhecimento estrito do idioma de partida e de chegada.
Exige o domínio de um vastíssimo conjunto de variáveis entre as quais a clara consciência de que nós, humanos, não somos apenas os criadores, os tradutores, os leitores mas também os seus próprios sujeitos. E, no caso vertente, todos nós mortais.
*Virginia Woolf, Ensaios Escolhidos, Relógio d’Água, 2014
Assessora de imprensa