Irritabilidade feminina
Vítor Leal, advogado
Aqui vai o testemunho de uma “peripécia” que ocorreu num julgamento no Tribunal de Alvaiázere, já lá vão uns bons anos… que se reveste de alguma piada, mas sobretudo demonstrativa de uma abertura e de colaboração, de como outrora se relacionavam os magistrados com os advogados.
Dizia eu que intervim como advogado do réu num julgamento de acidente de viação com morte.
No decorrer do mesmo, a juíza desde início que interrogava as testemunhas de defesa de uma forma agressiva, mesmo arrogante a tocar a ofensa…
Depois do interrogatório da segunda testemunha entendi, como introito, começar, no início do mesmo, por alertar as testemunhas de que não tivessem medo e que dissessem o que sabiam acerca do acidente, pois a senhora juíza iria começar, irritada, a ralhar com a testemunha. Tais dizeres da minha parte continuaram até à última testemunha.
Findos os interrogatórios, comecei as minhas alegações e na qualidade de colaborador na administração da justiça, pedia desculpas às testemunhas, pela maneira como haviam sido tratadas pela senhora juíza no decorrer das suas inquirições, alvitrando que tal se devia, como mulher que era, ao dia do mês… e por isso desculpável… a sua irritabilidade.
Houve risos na sala. A senhora juíza deu como encerrada a audiência e de seguida pediu que me deslocasse ao seu gabinete. O colega da companhia de seguros disse logo que seria minha testemunha, convicto que a senhora juíza iria participar de mim.
Quando entrei no gabinete pediu- me para me sentar, o que fiz, tendo começado por agradecer a posição que havia tomado nas alegações acerca do acidente, pois não estava a ver a ocorrência da maneira que havia exposto.
E, por fim, admitiu: “… Pois senhor doutor estou efectivamente nesses dias… e vou passar a levar isso em consideração aquando da marcação dos julgamentos…” Ganhei uma amiga.
Eram tempos difíceis, aqueles
Rui Martins, Oficial de Justiça
Zé Grande pôs a mão no lado esquerdo do queixo, mesmo onde o bastão do cabo Fernandes tinha acertado. Doía, e muito. Fora um fim de tarde de domingo bem atribulado.
Tinha de se vestir depressa para se apresentar no Tribunal a horas.
Assim lhe dissera o GNR. “Amanhã às nove no Tribunal, Zé. Não me faças vir por ti, ouviste?”
Fez a barba como pôde, tantas as dores no queixo e lá foi, com o seu melhor fato. Recebeu-o em lágrimas Teresinha, a Oficial de Diligências que tão bem o conhecia desde o tempo da primária. Lá arranjaram tempo de brincar e crescer juntos, mesmo em escolas separadas por género.
– Ó Zé, mas tu não sabes estar calado? Olhou para ela e encolheu os ombros, sem palavra que lhe saísse. Do âmago da sua simplicidade, havia algo em Zé de sofisticado para aquela altura, talvez pelos anos em que andou pela Alemanha e Canadá. Era um amor profundo pela liberdade que sentira nesses países. A sua e a dos outros.
Empurrado pelo carrascão lá da tasca, acabou por, ingenuamente, comentar os abusos constantes perpetrados pelo homem do regime lá da região. Daí até chegar aos ouvidos deste pela mão do Fuinha – assim lhe chamavam nas redondezas, por ser conhecido bufo – foi coisa de meia hora, mais coisa menos coisa, que Zé Grande já não estava lá muito bom para ver as horas.
Palavra puxa palavra e pimba!!
Bastonadas certeiras e com prontidão, que o cabo Fernandes quando carregava, não era de desperdiçar a oportunidade de fazer saber quem mandava! As dos costados ainda se aguentavam, mas aquela no queixo…
Quando entrou na sala de audiências, Teresinha tremia, de lenço na mão e a conter as lágrimas. O juiz já o aguardava.
Pesado, no corpo e na postura, era homem conhecido na região por gostar muito do respeitinho. Dizia-se à boca pequena que das poucas coisas que o alegravam, eram as tainadas de butelo com cascas e cordeiro de leite assado na casa do aludido homem do regime.
Leu o magistrado os factos de que vinha acusado Zé Grande.
As palavras saíram em tom solene, mas demasiado baixo.
A somar ao linguarejar jurídico usado, Zé Grande chegou a apurar o ouvido para perceber se não seria língua estrangeira que já ouvira.
E farto de nada entender daquele emaranhado jurídico, interrompe o juiz, num repentismo de ingenuidade, dizendo alto e bom som:
– Ó chô juiz, deixe lá icho e bamos ali à ti Florinda buber um copo!
Saiu dos calabouços quarta-feira pela manhã. Passou por Teresinha e piscou-lhe envergonhadamente o olho, numa percetível promessa de a rever e saiu. Estava um dia de Maio brilhante, radioso.
Mas a Zé Grande, parecia-lhe daqueles dias negros de Novembro, tempestuosos. Inadvertidamente, meteu a mão ao queixo, do lado esquerdo. Ainda doía. Mas o que mais lhe doía, não era o queixo, nem tão pouco o orgulho.
A alma, essa sim, lhe doía, pois tinha perdido para sempre três preciosos dias daquilo que mais amava. A liberdade!
E lembrou-se do pensamento que o vinha acometendo. Não eram fáceis, aqueles tempos…
Condenado… a continuar casado
Carlos Andrade Batista, Procurador da República
Tudo pronto para a caminhada. A peregrinação do 13 de Maio estava planeada há meses.
António e Isabel tinham-na decidido como última esperança para salvar um casamento que desenhava. A ideia até fora do esposo que para aliviar a consciência e arrepiar caminho de algumas traições conjugais, estava empenhado em rejuvenescer a conjugalidade e manter o sagrado laço matrimonial.
Ambos crentes, resolveram procurar ajuda espiritual e inspiração em Nª. Srª. de Fátima que a peregrinação, com o cunho sacrificial, certamente iria providenciar. Partiram cedo, com um grupo de crentes da terra, uma vila próxima de Viseu, alguns deles já repetentes nas idas ao santuário nos dias 13.
Naquela altura, anos 80, o apoio providenciado aos caminhantes era exíguo, a maior parte do percurso fazia-se por conta própria, sem as comunicações móveis de agora e carros de apoio.
Havia apenas locais previamente programados para pernoitar e comer. Mas o casal mantinha-se unido e estóico no seu desígnio.
Por alturas de Pombal, juntaram-se a outro grupo de crentes vindo dos lados de Coimbra. No meio deles, António reparou numa jovem que não obstante a indumentária que usava para facilitar os esforços da caminhada, nela sobressaía um rosto de uma candura, acentuada pelo sorriso que lhe dirigiu.
Entabularam conversa. Quilómetros percorridos, deram-se a conhecer mutuamente, e o convívio entre ambos evoluiu para o início do que viria a ser, já à entrada do santuário, a paixão de António pela jovem.
Isabel assistia, desesperada, antevendo o fim iminente do seu casamento, sem que nada pudesse fazer para o evitar, tal era o ardor, indisfarçado, do seu marido pela jovem.
No regresso da peregrinação, António já não veio na companhia da mulher. Procurou na comarca da residência, por ultimato da jovem paixão, pôr termo ao casamento e formalizar publicamente a nova relação, com um processo de divórcio fundado na separação de facto.
Isabel contestou, acusando-o de cometer adultério a coberto da fé.
As testemunhas, do grupo da peregrinação, confirmaram em julgamento a traição de António.
Porém, o tribunal presidido por um juiz corregedor católico praticante, com o assentimento dos dois juízes que o assistiam, negou a pretensão do autor, alegando que não ficara provado que a relação matrimonial estava irremediavelmente comprometida, segundo a lei, “sem a possibilidade de vida em comum”, não obstante o comportamento de António.
O castigo para o seu pecado, era, pois, continuar casado. Não se sabe quanto tempo o casamento de António e Isabel ainda perdurou, porque o autor desta história, foi, pouco tempo depois da prolação da sentença, movimentado para outra comarca.
Os nomes dos cônjuges são, obviamente, fictícios, ao invés da história que é baseada num facto real, constante de um processo há muito esquecido no arquivo judicial.
Arguido encavacado
Antigo juiz da Comarca de Leiria
Sem olvidarmos a seriedade, a formalidade e o respeito, entre outros, que os tribunais devem nutrir, existem momentos com um lastro quase anedótico.
Numa vida, vivida, durante muitos anos, nos tribunais, muitos foram os momentos em que esbarramos com momentos hilariantes.
Num turno de sábado é-me apresentado um arguido detido para primeiro interrogatório judicial.
Depois de lhe perguntar pelo nome, filiação, data de nascimento, naturalidade, profissão e residência, perguntei-lhe, com ar muito sério: “clube”?
O arguido, já com alguma idade, olhou para mim, e hesitou em responder.
Insisti: “clube”?
Depois de uma pequena e nova hesitação lá respondeu: “Sporting”?
Esperei alguns segundos, fiz uma cara muito séria e disse: “Ui, ui, ui, que isto está muito mau”.
O arguido encavacado, encostou-se na cadeira com algum receio e após breves momentos retorquiu: “Mas o meu filho é do Benfica!”.
E assim, após este pequeno episódio, passou-se ao interrogatório propriamente dito.
Câmara indiscreta
Mónica Lobo Gregório, Advogada
Estávamos em Março de 2020 e decorria um chamado mega-julgamento que obrigou à realização de obras na “sala grande” do Palácio da Justiça para conseguir acolher tantos intervenientes.
Eram 89 volumes e mais de 50 apensos, uma acusação com 737 páginas, uma pronúncia de 1.019 páginas, 82 arguidos, cerca de 60 advogados e pelo menos 1.088 testemunhas arroladas pelo MP, a que acresceram várias dezenas da defesa.
Iniciado o julgamento, com sessões diárias agendadas até Maio, veio o mesmo a ser suspenso à 14ª ou 15ª sessão. O país e o mundo não eram mais seguros e lá fora morriam milhares de pessoas vítimas da Covid-19.
Fomos mandados para casa. Apesar do declarado estado de emergência, com a consequente coartação de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, logo se percebeu que o direito à liberdade continuava a ser um direito fundamental, e que o julgamento teria de recomeçar, uma vez que alguns arguidos se encontravam em prisão preventiva.
Em Maio foi retomado o julgamento, num auditório de um estabelecimento de ensino da cidade, com a presença física do colectivo de juízes, da magistrada do MP, das oficiais de justiça e dos advogados que o pretendessem.
Os demais intervenientes, podiam assistir e intervir através da plataforma webex, à qual se acedia através de link enviado para o e-mail de cada um, e que permitia a intervenção em tempo real de todos, na segurança das suas casas, escritórios ou outros.
Escusado será dizer que o referido julgamento foi pautado por situações insólitas e caricatas, a maior parte protagonizadas por testemunhas, que, e por se tratar de julgamento realizado através de meio de comunicação à distância, não tiveram a real noção da sua solenidade.
Pudemos assistir a testemunhas que pretendiam prestar depoimento em tronco nu, ou dentro do autocarro enquanto este circulava.
Outras que se levantaram a meio do depoimento para abrir a porta de sua casa a terceiros, ou que devido a dificuldades de visão ou audição chamavam os elementos do seu agregado familiar para ajudar no depoimento.
Numa das sessões, e quando nos encontrávamos na sala de julgamento virtual, vimos aparecer no ecrã um senhor muito descontraído, em tronco nu, ao lado de uma senhora advogada, que se não havia apercebido de que a câmara estava ligada.
Após breves segundos e algumas gargalhadas alguém lá avisou a colega, que se mostrou muito atrapalhada, bem como o aludido senhor, e, foi finalmente desligada a câmara. Houve de tudo, e bem vistas as coisas, foi precioso.
Gargalhadas, precisavam-se!
Uma última informação: todos os arguidos foram absolvidos!!!
A culpa (não) foi do estrado
Pedro Lago Varanda, Juiz de Direito
O julgamento do Sr. A, em Tribunal Colectivo (com três juízes) começou de forma bastante tensa, com a acusação de violência doméstica sobre a sua esposa.
A juiz presidente do colectivo perguntou ao arguido se ele de facto tinha partido o estrado da cama durante um episódio de violência, ao que o Sr. A prontamente respondeu: – Sra. juíza, não foi por violência que o estrado da cama se partiu, foi por amor!
Perante a perplexidade do Tribunal com a resposta, a juiz presidente pediu para que o arguido explicasse melhor a situação.
O Sr. A começou a contar que, no episódio em questão, ele e a sua esposa estavam a “fazer o amor” (expressão do arguido) com tanta intensidade que o estrado da cama simplesmente não aguentou.
– Sra. juíza, se me permite, o estrado da cama era de uma qualidade tão fraca que bastou um pouco mais de entusiasmo da nossa parte para que ele se partisse. Foi apenas um acidente! – defendeu-se o arguido – que seguidamente olhou para um dos juízes-adjuntos do colectivo e rematou – Era daqueles estrados fraquinhos, V.ª Ex.ª sabe como é que são?
A sala do tribunal ficou em silêncio por uns momentos, e o juiz-adjunto, perante o comentário do arguido a olhar para si, tapou a cara com a cópia da acusação à frente, para disfarçar a sua vontade de rir… perante tal situação inusitada e absurda.
O Sr. A acabaria por vir a ser condenado pelo crime de violência doméstica, saindo do Tribunal com duas lições: a primeira foi a de que não se deve bater em ninguém, muito menos na esposa e, a segunda, foi a de que, da próxima vez, teria de investir num estrado de cama de melhor qualidade.