Na nova visita encenada ao Castelo de Leiria, que O Nariz estreia no fim-de-semana, a acção decorre em 1915 e num encontro que é tudo menos pacífico envolve três figuras com interesses conflituantes: o empreiteiro, rico em bitaites, para quem no negócio de partir pedra as soluções mais baratas e eficazes são as melhores; o arquitecto, sonhador, ansioso por melhoramentos custe o que custar; e o presidente de câmara, pragmático, que só está disposto a salvar o que puder e, sobretudo, não quer abrir os cordões à bolsa.
Ao empreiteiro, Manuel da Graça, não faltam ideias: no morro, um ascensor como aqueles de Lisboa (ou mesmo um teleférico desde a torre da sé) e lá em baixo, junto ao rio, um campo de futebol “todo ensaibrado” e “marcadinho a cal”, um mercado e uma piscina. “Estas muralhas, por exemplo, era tudo rebocado. Meio cimento, meio areia. Toca a andar. E depois pintávamos de branco. Ameias e tudo. Ficava tudo branquinho”. Manuel da Graça sugere, até, endireitar a porta do castelo, para grande irritação do especialista que o escuta. “Lá em cima, a muralha caiu. E não é que topámos com umas cabanas velhas lá do tempo da pré-história? O que é que fizemos? Tapámos. Não viesse para aí algum engenheiro e mandasse parar a obra”.
O arquitecto, Ernesto Korrodi, faz orelhas moucas e também tem coisas para dizer: “Aqui deste lado, um anfiteatro. Desse lado aí, um palco”. O anfiteatro, presente no texto de Luís Mourão encenado por Pedro Oliveira, só se tornaria real 106 anos depois, após a mais recente requalificação do castelo de Leiria, inaugurada em 2021 com o suporte de fundos comunitários. Que, provavelmente, teriam dado jeito no início do século XX.
João António Correia Mateus, o presidente de câmara, é a terceira personagem da peça de teatro – e a frase que melhor o define, durante o espectáculo, é esta: “Siga, siga, não se mexe aqui”. O contexto (a instabilidade da primeira república e a insegurança da guerra mundial) não é famoso e o autarca tem na calha outras iniciativas que considera mais prioritárias.
O Que Cá Está / O Que Cá Estava, para ver pela primeira vez no sábado, 18 de Janeiro, com início às 15:30 horas, conta com os actores Cristóvão Carvalheiro, Nuno Crespo e Pedro Oliveira e ao longo de aproximadamente uma hora percorre alguns dos pontos mais emblemáticos do Castelo de Leiria, como as cisternas, a igreja da Pena, o último reduto com a torre de menagem ou a varanda do palácio. “E deixamos lá as pessoas a olhar para a cidade”, adianta o encenador.
“Alvoroço em Leiria”
O castelo que a visita encenada evoca não é o que se vê hoje – daí o título. E é precisamente na antecâmara de uma campanha de restauro – provocada “pela derrocada de uma parte da muralha”, que gerou “alvoroço em Leiria”, explica Luís Mourão – que os três homens se reúnem. Os fundos são da Liga dos Amigos do Castelo – que “nunca foi valorizado localmente”, excepto por “um núcleo de pessoas”, assinala o dramaturgo – com apoio financeiro do Estado e tutela da Direcção de Obras Públicas e Minas, que, pode ler-se na sinopse, “desenha um caderno de encargos muito distante do almejado por Correia Mateus e, sobretudo, por Ernesto Korrodi”, o autor do projecto de requalificação do monumento, à época em ruínas.
O construtor “representa ali”, segundo Luís Mourão, “a visão dos técnicos de Lisboa”, em que o recurso ao betão armado é simbólico. “O Korrodi faz os possíveis para que isso não aconteça”. Os desafios e tensões atingem o pico junto aos paços reais. “Aqui é que está o berbicacho maior”, queixa-se Correia Mateus. “Por mim, mandava tudo abaixo e fazia uma coisa como deve ser”, propõe Manuel da Graça. Korrodi exaspera-se: “Isto é a jóia da coroa!”
Cenário ingrato
Desafiado a escrever o guião da visita encenada, uma iniciativa do colectivo O Nariz com o Município de Leiria, num cenário que “tem características muito ingratas” para o efeito, dada a inclinação do terreno, a Luís Mourão não interessava utilizar reis e rainhas, os protagonistas mais prováveis. Preferiu “abordar a história” de maneira “diferente”, com “liberdade”, trazendo à superfície “algumas informações pouco divulgadas”. E aponta: “A verdade é que o castelo não estava em pé se não fosse o Korrodi. Devemos-lhe isso”.
No percurso, sinaliza-se “o que é premente fazer” e “aquilo, que também é premente fazer, mas não há dinheiro para se fazer”, resume Pedro Oliveira. Correia Mateus “tem aquela lógica de não gastar”, diz Nuno Crespo. E o suíço Ernesto Korrodi, pelo contrário, “quer recuperar o mais possível”, por “amor ao edifício”, salienta Cristóvão Carvalheiro.
De acordo com a Câmara de Leiria, estão previstas oito sessões de O Que Cá Está / O Que Cá Estava. A participação depende de inscrição (até ao dia anterior) e aquisição do bilhete de entrada no castelo.