O ninja chama-se Toni e o filme tem porrada da boa, litradas de sangue falso e várias frases que se tornaram icónicas. “Vais sentir a supremacia da dor”, “digam-me os vossos nomes e eu mato-vos por ordem alfabética” ou, a favorita de João Pombeiro, “o que tu fizeste não é imperdoável”, que resulta de um lapso propositadamente não corrigido.
Obra de culto entre amigos no circuito VHS antes de passar na SIC Radical, O Ninja das Caldas faz 25 anos e pela primeira vez será exibido numa sala de cinema. A sessão no Porto (próximo sábado, 1 de Março, com a presença do realizador Hugo Guerra) vai recuperar a luta pelo poder do Búzio Dourado que opõe o herói Toni Canelas e o vilão Evil Dragon, uma sátira à portuguesa temperada com sotaques do Algarve, do Barreiro e de Peniche, regiões de onde os actores principais (e guionistas) são originários (Octávio Lourenço, Ricardo Guerreiro e José Serpa). O bem contra o mal, vingança e um amor impossível, mas, também, pinhocas e sandálias com meia branca numa comédia de acção série B do it yourself em que os assistentes de produção tanto aparecem no ecrã a segurar pela cintura um personagem que “voa” como deixam cair no enquadramento o saco de pó de pedra usado para simular nevoeiro.
“Ali, toda a gente tinha consciência da porcaria que estava a fazer. E a piada era essa”, comenta João Pombeiro, responsável pelo design e pós-produção e, ocasionalmente, figurante. Se os protagonistas parecem ventríloquos, não é por acaso. O Ninja das Caldas “foi filmado ainda sem haver uma história completamente definida ou diálogos, e o facto de a voz não bater certo”, segundo João Pombeiro, que é natural de Leiria e hoje trabalha como artista visual, “não só é uma referência àqueles filmes que eram feitos em Hong Kong de artes marciais e depois dobrados por americanos, tinha a ver com a maneira como estava a ser feito, que era de improviso, quase”.
Com um custo de 36 euros, que corresponde ao preço das cassetes e do aluguer de um barco de recreio no Parque D. Carlos I, filmado com uma câmara de vídeo 8 e editado em modo analógico, O Ninja das Caldas, anunciado como “o primeiro filme de ninjas português”, nasceu de um grupo de estudantes e foi o projecto apresentado por Hugo Guerra na disciplina de Pintura do curso de Artes Plásticas na actual Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha (ESAD.CR). Baixo orçamento e limitação de meios, sim, e, por outro lado, um “mal feito bem feito” destinado a revelar uma “abordagem subversiva” e “mais descontraída” inspirada no “desprendimento” e na “desconstrução intencional” da arte.
Tão importante como o contexto – a escola de Caldas da Rainha e influências como Manuel João Vieira e o movimento Homeostético, em que surgem os Ena Pá 2000 – é a época. “As coisas, de facto, eram muito diferentes. Não havia nada para fazer, ninguém tinha internet”, lembra João Pombeiro, ou seja, “dava para estar uma tarde inteira no pinhal a inventar cenas de um filme ninja”.
A banda sonora, igualmente, inesquecível, é assinada por Ana de Lagos & Gina e os Amigos. Depois de estrear no auditório da ESAD.CR, O Ninja das Caldas começou a ser mostrado anualmente aos novos alunos, circulou de mão em mão através de cópias VHS numeradas e em 2002 chegou à SIC Radical, que o incluiu na grelha por cinco vezes e no ano seguinte o editou em DVD. Na ocasião, Nuno Markl atribuiu-lhe “estatuto mítico”.