Brincar é muito mais que brincar. E parece ser no neocórtex (área cerebral mais desenvolvida no Homo Sapiens), que se aloja e sedimenta esta fundamental competência do ser humano, enquanto destreza vital do desenvolvimento.
Brincar não é uma acção exclusiva do homem, estando igualmente presente numa enorme diversidade de espécies animais, sobretudo mamíferos. E reveste-se da função primordial de favorecer a progressão, rumo à independência e facilitação da autonomia ou da regulação das funções emocionais e sociais, por via do jogo e mimetização simbólica da realidade.
É no palco da brincadeira que é possível errar, perder, ensaiar, experimentar e intuir. Mas também, imitar, vencer, observar e reformular estratégias, potenciando a eficiência e a solidez dos comportamentos, dos pensamentos e das reacções.
Inúmeras são as pesquisas neurobiológicas que demonstram o óbvio, aquilo que transportamos desde as nossas origens: a brincadeira tem uma razão de sobrevivência, dandonos a possibilidade de edificar um cérebro pró-social, favorecendo interacções determinantes para a evolução e sabedoria efectivas, labor que é indissociável da condição humana, cuja linhagem de seres gregários que usam as confluências da relação é valor universal.
E isso é condicionado quando os pais manifestam tendência para querer controlar em demasia as brincadeiras dos filhos, o que aumenta a preocupação de que o papel dos educadores em possibilitar que as crianças brinquem mais tempo na rua, em contacto com os elementos naturais e com os pares, na livre interferência significativa, tem vindo a crescer, uma vez que estas brincadeiras já não fazem parte do quotidiano, comparativamente com o que sucedia no passado.
Sabemos o quanto a felicidade é uma dimensão dilatada e abstracta, mas indiscutivelmente essencial para o desenvolvimento pessoal de cada indivíduo.
Afinal, há experiências, paladares, [LER_MAIS] sensações, aromas e memórias que não voltam a ter o mesmo corpo em mais nenhuma fase da vida.
Paradoxalmente, não constitui para nós estranheza que as crianças de hoje, adultos de amanhã, sejam mais frágeis, mais imaturas e menos capazes de se controlar e autorregular, ignorando-se repetidamente que essas são dotadas para brincar, sondar a sua criatividade, errar, cometer falhas, o que é o seu estado natural.
Nesse universo de exercitação, precisam ser perseguidas, de perseguir, lutar, saltar, esconder-se, reinventar, tendo de ser o adulto a adequar-se a essas necessidades básicas de crescimento, e não o inverso. No entanto, a escola e a sociedade faz o esforço contrário para as ter imóveis e em silêncio, contrariando a condição inata.
Estamos a inverter uma máxima crucial e que nos toca a todos enquanto adultos e educadores: os pais devem expor os filhos aos riscos, não aos perigos, fomentando assim, precocemente, a sua capacidade para se superarem e delinearem estratégias activas na resolução de problemas.
Qualquer criança tem mais necessidade de modelos e exemplos adaptativos do que exigências, críticas ou punições. E a este respeito, Antoine de Saint- Exupery transmite-nos uma verdade incontornável: «As crianças têm de ter muita paciência com os adultos».
*Psicólogo clínico