O espectáculo inicia-se com o sacerdote Lolim a esculpir barro entre canas de bambu apontadas ao céu, enquanto os sons criados por Surma envolvem o cenário onde, ao centro, do interior da massa disforme de corpos cobertos por panos, emergem três mulheres e dois homens, cada um protagonista da história que o Leirena se prepara para contar.
Vestidos com camisolas de clubes desportivos, da Juventus de Itália ao Inter Miami de Leo Messi, constituem o Povo da Montanha, no mapa que o sociólogo Turnbull, aparentemente idealista, talvez até ingénuo, pelo menos à chegada, logo começa a desenhar com ar de quem cai de paraquedas por acidente. Expulsos da zona de conforto, o solo sagrado, devido a uma reserva de caça imposta pelo governo; obrigados a abandonar tradições e modo de vida. E é o chefe da aldeia, Atum, quando se dirige ao cientista estrangeiro, que primeiro dá voz aos novos hábitos e (ausência de) valores: “Não gastes tabaco com ela. É só uma velhinha”.
Cedo, as relações de poder manifestam- se e os locais, impedidos de caçar e de cultivar a terra, frequentemente esfomeados, disputam a atenção de Turnbull e sobretudo cobiçam a comida e o dinheiro que o sociólogo leva para um lugar de flagrante escassez e miséria. As crianças são postas fora de casa aos três anos de idade. Ficam na rua, comem o que encontram. Os velhos também dormem onde calha, mas ainda mais abaixo na hierarquia do desprezo social: têm nada.
De África a Gaza
O Povo da Montanha, produção multidisciplinar que combina teatro, artes plásticas e música ao vivo que o Leirena estreia amanhã, inspira-se no estudo publicado por Colin Turnbull acerca da etnia Ik, no Uganda. No entanto, em cena apresenta-se um povo “que pode ser qualquer povo”, em qualquer continente, comenta o director artístico da companhia sediada em Leiria. “É um problema global”. Como “decisões políticas podem afectar uma comunidade”, ao ponto de se instalar uma dinâmica “de sobrevivência”, individualista, onde antes existia empatia, sentimento de pertença e cooperação.
“Pode ser o povo cigano, retirado de um sítio e posto no outro, podem ser os pescadores que de repente com os barcos do arrastão não têm condições de vida, podem ser os velhinhos que são postos num lar de idosos”, diz Frédéric da Cruz Pires. As vítimas do “agronegócio”, de “parques naturais para turista ver” ou mesmo da corrida ao “lítio”. “Ou Gaza, até”, onde “há apropriação de um território”.
Nos últimos anos, o apelo para questões sociais, de preservação da herança cultural e de defesa do ambiente tem influenciado parte do trabalho do Leirena, por exemplo, nas peças Sob a Terra e Playground.
Isolados, menosprezados, postos de parte, os aldeões tanto se esforçam para aparecer sorridentes nas imagens que o sociólogo vai registando como se criticam mutuamente, com inveja. A ganância que os aflige torna-se evidente quando Turnbull vê com os próprios olhos como se agridem por alimento e roubam uns aos outros sem misericórdia nem apego por laços de família.
Dias na tribo
Na preparação de O Povo da Montanha, o Leirena esteve uma semana em residência em Ponte de Lima, mês e meio no Juncal e, antes, na segunda internacionalização do grupo desde sempre, vários dias no Brasil, a criar dois espectáculos de raiz com duas comunidades indígenas, nas regiões do Paraná e de Florianópolis.
Do outro lado do Atlântico, a actriz Virgínia Achique trouxe “o ambiente”, “os movimentos” e “as músicas”. O encenador (e actor) Frédéric da Cruz Pires destaca a importância de observar “o espírito comunitário de quem luta por direitos” contra “o que pode vir de fora”.
O que o espectador vê está a mudar em tempo real. “Vai-se transformando, não só o cenário, como os próprios personagens”, explica o artista plástico Nuno Viegas. “Eu pego no barro e caracterizo os personagens em função daquilo que está a acontecer e também sou um personagem activo, que interage com os actores, com o público e com a matéria. Uma espécie de feiticeiro”.
Em palco, uns “700 quilos” de barro e “40 canas” de bambu. “Criámos esta leitura de que tudo se passa na minha cabeça, na cabeça do feiticeiro que está a contar a história, como se eles fossem bonecos que eu uso”. O barro “tem a ver com muitos mitos de criação”, aponta Nuno Viegas. “Deus fez os homens a partir do barro. E isso acontece na peça”.