Geladeira, suco, picolé ou banheiro são algumas expressões que as crianças que falam o português europeu estão a utilizar em casa. O tempo que passam em frente ao telemóvel a ver desenhos animados e vídeos no TikTok ou no Youtube em português do Brasil influencia a sua forma de se expressar, sobretudo na faixa etária dos 2 aos 4 anos. Pais, educadores e professores procuram corrigir as crianças, explicando-lhes que essa não é a linguagem nativa em Portugal.
O tema tem causado discussões nas redes sociais e em grupos de pais, onde muitos se mostram preocupados com o facto de as crianças começarem a aprender o português europeu da forma que eles consideram ‘incorrecta’.
No entanto, quem está no terreno assegura que à medida que as crianças crescem e vão fazendo a aquisição da linguagem, aprendem a língua predominante na sua comunidade. Quando entram no 1.º ciclo, a oralidade pode ter expressões do que vêem e ouvem, mas a escrita é em português europeu.
A ideia é desdramatizar. As novelas de terras de Vera Cruz e a banda desenhada do Tio Patinhas sempre estiveram em Portugal sem qualquer tipo de celeuma e até os adultos utilizam expressões brasileiras.
Etelvina Lima, terapeuta da fala doutorada em Estudos de Criança, admite que a aprendizagem de mais do que um idioma pode ser positivo, seja ele o português do Brasil ou o inglês. “O multilinguismo não representa qualquer coisa negativa. Muito pelo contrário, é positivo neurolinguisticamente falando. É uma vantagem termos crianças multilingues.”
A também professora da Escola Superior de Saúde do Politécnico de Leiria reconhece que “se uma criança está exposta a diferentes modelos linguísticos no momento de aquisição da língua vai-lhe ser, durante um período, mais difícil fazer a organização de cada estrutura”. Adoptar as regras de determinada língua pode tornar-se mais difícil para a criança aprender.
“Não considero, contudo, que isto tenha impacto neurolinguístico”, sublinha.
Telma Jordão, professora do 1.º ciclo, concorda. “Até é óptimo falarem outra língua, mas é preciso que os adultos estejam atentos e os ajudem a organizar-se, mas deixando- os descobrir por si”, realça, ao reforçar que a multiculturalidade que também existe nas salas de aula é benéfica. “É uma oportunidade de ambos aprendermos uma língua diferente e enriquecer-nos ainda mais.”
Corrigir vocabulário
Na sua experiência diária constata que é comum os mais pequenos falarem o português do Brasil dada a exposição frequente a vídeos no Youtube e TikTok, no entanto, não quer dizer que a situação se mantenha na escrita. “Se tiverem em casa pais que corrijam, bons falantes do nosso português e que incentivem a leitura não há problema”, afirma.
A docente recorda o período em que as novelas brasileiras entraram nos ecrãs portugueses. “Claro que a exposição era menor, porque só tínhamos a televisão, mas não ficámos a falar brasileiro”, aponta.
Etelvina Lima acrescenta que entre o português do Brasil e o português europeu existem “muitas diferenças, de vocabulário e de organização morfossintática, inclusivamente da pragmática”, até porque há “ritmos de fala e entoações diferentes”, mas o que a preocupa é o tempo de exposição aos dispositivos.
“Este tempo de tela é aquilo que as crianças não têm com as suas famílias e isto é o elemento mais preocupante, pela diminuição das interacções nas dinâmicas familiares, com implicações neurodesenvolvimentais”, afirma.
Também para Telma Jordão, o tempo que as crianças passam aos dispositivos móveis fazem diferença e até influenciam as aprendizagens e os comportamentos na escola. “Estão habituados ao fácil consumo, ao imediato e a escola exige esforço e trabalho. Quando pensam que não são capazes, não investem. Em termos sociais também não estão tão disponíveis e nem sabem bem como brincar no recreio”, lamenta.
A educadora de infância Ana Caseiro confirma as expressões do português do Brasil de crianças entre os 2 e os 4 anos. “Estão muito expostas e a aquisição da linguagem faz-se em brasileiro. Vamos corrigindo o vocabulário. No início os pais até acham alguma piada, mas depois começam a ficar incomodados”, confessa.
Ana Caseiro defende também uma menor exposição ao tempo de ecrã, apesar de considerar que as expressões apreendidas nas redes sociais não interferem muito com a aquisição da linguagem, porque “depois começam a ter percepção de como se fala em Portugal”.
Médicos aconselham