Por razões várias, conheço bem hospitais. E centros de imagiologia e valores de referência, marcadores tumorais, sedações e cateteres, transfusões de sangue, cirurgias e pós-operatórios.
Sei muitos nomes de doenças e tendo a não simpatizar com o sector da saúde. Por razões pessoais preciso de fazer exames imagiológicos de rotina e a condição de regime ambulatório parece-me sempre a de contornos mais amigáveis.
Pode ou não estar-se doente e o sistema dá-nos, ainda, o benefício da dúvida. Tal como eu a mim própria, que a meio do percurso posso sempre pegar nos meus pertences e pura e simplesmente recusar a indiscrição tola das imagens que me pesquisam o corpo e tentar esquecer que ele adoece.
Nos hospitais o cerco é mais requintado. O novelo da burocracia retira a liberdade da cobardia e da desistência e dificilmente se consegue sair da máquina branca.
À entrada no gabinete da ressonância magnética que fiz há dias a ordem de comando é sempre a mesma. “Retire tudo. Guarde os seus valores, vista a bata e resuma-se ao seu corpo”.
Antes de entrar numa sala de radiologia ocorre-me com regularidade este pensamento.
O resto irredutível que nos fica dos dias é tão só este – o corpo que vai ser escrutinado. Um corpo sem nada, sem condição social, académica ou família, a bata, as máquinas, os técnicos, os médicos e o diagnóstico que virá a seguir.
E, no entanto, todos aqueles aparelhos de grande precisão, [LER_MAIS] todos aqueles especialistas são incapazes de nos escrutinarem a memória e o coração e de nos medirem o pulso ao medo, ou a vontade de não ser investigado.
E é enquanto o túnel onde estou fechada me recolhe os sinais do corpo que me ocorre a imagem dela. Um corpo sem pertences numa bata anónima.
Ela os médicos, os técnicos de radiologia, as máquinas e o que virá depois. Ela muito magra, depois de mais um ciclo dos tratamentos que lhe levaram o fôlego vital, com o corpo já a meio e a funda dignidade com que cumpria aquilo tudo.
Numa bata anónima e ela entre muitos.
À saída do túnel branco as ondas de radiofrequência registam imagens do meu corpo sem pertences que não anunciam sobressaltos graves de saúde.
O regime ambulatório é de facto amigável e mesmo assim eu posso sempre desistir e estancar a torrente tola que nos quer ver por dentro e à qual afinal escapa tudo o resto. A
ressonância magnética é um exame estúpido. Escapa-lhe o irredutível e o irredutível afinal não está no corpo.
*Assessora de imprensa