Nasceu e cresceu a partir do zero. De uma cova, à qual foi dada o nome de Iria, onde apenas havia pedras e alguma vegetação, pouca, que conseguia romper a dureza do calcário da Serra de Aire. Um cenário muito diferente do que é hoje.
Mas, para chegar ao figurino actual, muitos foram os projectos pensados e desenhados para o Santuário de Fátima, boa parte dos quais nunca saiu do papel.
É disso exemplo a proposta de uma cobertura do espaço entre as duas colunatas, os sucessivos projectos para a capelinha das Aparições ou o plano para a construção de uma grande escadaria, ladeada por 14 capelas, a ligar a zona de cova ao monte onde foi erguida a Basílica de Nossa Senhora do Rosário.
Houve ainda uma proposta para a edificação de uma segunda capela das confissões, que existiu no sítio onde hoje se localiza parte da escadaria em frente à colunata. Mas não só a réplica não avançou como o original acabou demolido.
Salvo da demolição, foi o fontanário, cujas origens remontam ao tempo das primeiras construções em Fátima e que abastecia os peregrinos e ajudou ao desenvolvimento das obras na Cova da Iria.
Ainda hoje esse fontanário lá está, bem próximo da capelinha das Aparições, mas invisível e inacessível a quem visita o santuário. Encontra-se subterrado, a alguns metros de profundidade, debaixo da coluna existente no centro da rotunda do recinto, sendo apenas “visitável” pelos serviços técnicos do santuário.
“É uma marca desse tempo antigo, que permite avaliar quão mais fundo era o terreno da Cova da Iria”, refere Marco Duarte, director do Serviço de Estudos do Santuário de Fátima, explicando que o fontanário foi subterrado pelo plano de Cottinelli Telmo para a regularização do recinto, com a criação da plataforma para a reunião das assembleias.
Além de dar uma noção da “sinuosidade” do terreno, o que ficou debaixo do asfalto tem servido para alimentar o “mito” da existência de corredores subterrâneos no santuário. “Todos os mitos têm sempre um fundo que proporciona essa visão. O mito dos túneis vem daqui. Realmente, debaixo deste recinto existem percursos, que são muito curtos, porque ele foi subterrado”, conta o historiador.
Capelinha resistiu a diversos projectos
Erguida por populares em 1919 e reconstruida em 1922, após ter sido dinamitada num ataque bombista, a capelinha das Aparições esteve sempre, ao longo de décadas, no centro de uma “tensão entre a arte popular e a arte erudita”. Neste caso, venceu a primeira, com a manutenção do templo original e o abandono dos sucessivos projectos que pretendiam retirar-lhe a linguagem popular.
[LER_MAIS] A primeira proposta surge no final dos anos 20, pela mão do arquitecto Gerardus van Krieken, autor da Basílica de Nossa Senhora do Rosário, e pretendia que a capelinha fosse “completamente refundida e transformada num lindo e gracioso monumento, com outra linguagem”, como referia, em 1929, o jornal Voz da Fátima, o órgão oficial do santuário.
“Nos anos 50, 60 e até 70, continua a haver projectos para a capelinha, mas ela continua a ficar naquela linguagem popular. O que está em causa é um desconforto relativo ao lugar mais importante do santuário, que, porventura, as autoridades eclesiásticas de cada tempo viam como uma arquitectura pobre. Mas não houve a coragem de a deitar abaixo e fazer naquele lugar um projecto erudito”, realça Marco Duarte.
É já no início dos anos 80, no âmbito de um concurso nacional, em que entram “os melhores gabinetes de arquitectura”, que a capelinha ganha a configuração actual. Retira-se o “alpendrezito”, adicionado nos anos 20 à construção original, e coloca-se uma outra cobertura, “já com uma linguagem erudita”, sem, contudo, pôr em causa a capelinha antiga, que assume uma posição de “relíquia”.
“Passa a ser uma escultura onde não se pode ir. Fica intocável Já não se faz um projecto para a capelinha, mas para que esta pudesse ficar dentro de uma espécie de guarda jóias.”
Desse concurso nacional – do qual resultou o projecto concretizado para a construção do Centro Pastoral Paulo VI -, saíram várias propostas para a construção de uma cripta, para acolher grandes assembleias, mas a ideia é abandonada e nenhum dos projectos apresentados sai do papel. Mas é aí que começa a germinar a “semente” do que vem a ser a Basílica da Santíssima Trindade, avança Marco Duarte.
“A cripta não foi feita, mas não se perde a necessidade que o santuário vê como premente de albergar peregrinos debaixo de cobertura para que possam ter conforto nas celebrações”, refere aquele investigador, recordando que já antes tinha havido um projecto para a cobrir o espaço entre as duas colunatas, de forma a que os fiéis pudesse participar nas cerimónias “protegidos”.
Essa proposta data dos anos 60, mas os “problemas estéticos” que suscita condenam-na a ficar na gaveta. Esse foi também o destino dada à intenção, materializada em projecto, do bispo D. José Alves Correia da Silva para transformar a Cova da Iria à imagem dos santuários barrocos: uma igreja no centro de um monte ao qual se acede através de um percurso em escadaria, ladeado por várias capelas.
“O sacromonte, com a basílica imponente no cimo e com capelas ao longo do percurso, à semelhança do Bom Jesus, em Braga, ou do Senhor dos Remédios, em Lamego”, explica Marco Duarte. Segundo conta, havia já mecenas para “patrocinarem” algumas obras, mas o projecto foi abandonado.
Contudo, as capelas acabariam por ser erguidas no interior da basílica, recuperando “a temática dos mistérios do rosário”.
Na gaveta ficou também a ideia para erguer uma réplica da capela das confissões, edificada no espaço hoje ocupado por parte da escadaria enquanto decorria a construção da Basílica de Nossa senhora do Rosário.
“Essa capela serve para acolher a chamada missa dos doentes, que era feita nas primeiras peregrinações aniversárias nos anos 20 e 30. Construiu- se ainda um pavilhão para dilatar o seu espaço”, refere o director do Serviço de Estudos do Santuário, adiantado que a ideia de duplicar essa capela tinha como intuito criar espaços distintos para as confissões: de um lado os homens; do outro as mulheres.
Mas, a ideia é colocada de lado, com o plano de regularização do recinto, desenvolvido nos anos 40 por Coitinelli Telmo, a determinar a demolição da capela.
Arte erudita leva a melhor
“Quando olhamos para as edificações existentes e analisamos o que existe no arquivo, temos a percepção do muito que ficou por construir”, reconhece o director do Serviço de Estudos do Santuário, sublinhando, contudo, que “há uma linha condutora” em todo o processo.
“Ainda que D. José Alves Correia da Silva não tenha conhecido o projecto da Basílica da Santíssima Trindade, ainda que os autores dos anos 40 não tenham contactado com os autores dos anos 20 ou que os do século XXI não tenham contactado com os autores dos anos 70 do século XX, todos eles têm um objectivo em comum: a arquitectura deste santuário deriva da maneira de aqui rezar”, defende o investigador, frisando que “a forma como as pessoas rezam, como caminham como estão numa celebração ou fazem a procissão, condiciona a forma de transcrever isso para um projecto”.
“A arquitectura condiciona a maneira de rezar, pela forma como disciplina as movimentações e condiciona o acesso aos lugares mais sagrados, mas a forma de rezar também condiciona a arquitectura”, concluiu Marco Duarte, que, sobre a tensão entre as artes popular e erudita no santuário de Fátima, diz não ter dúvidas de que a última se impôs.
"O santuário tem claramente uma linguagem erudita. A única construção popular que venceu foi a capelinha das aparições. Tem sido uma resistente.”