Inaugurada, no sábado, 13 de Junho, a exposição Cumplicidades é um dos exemplos de estratégia da Leiria Cidade Criativa da Música, no âmbito da Rede das Cidades Criativas da UNESCO. Na Biblioteca Municipal Afonso Lopes Vieira, em Leiria, numa mostra à volta da figura de Santo António, fazem-se pontes e criam-se ligações locais, regionais, nacionais e internacionais.
No espaço, numa primeira fase, casa-se a literatura de Afonso Lopes Vieira, o trabalho em barro de Helena Maria Ferreira e a pintura de Frei Carlos de Lisboa. Haverá ainda, num segundo momento, um conjunto de actividades ligadas a este tema com a participação do Museu de Santo António com a vinda da exposição fotográfica Santo António – de Lisboa e de Pádua para Leiria, de Marc Gulbenkian, autor destas fotos que ilustram um livro de António Mega Ferreira, com o mesmo nome.
Esta é uma história que começou há quatro séculos e com um retábulo saído das mãos de Frei Carlos de Lisboa, pintor do século XVI, que inscreveu a óleo sobre madeira a figura de Santo António e o menino, tornando-o num ícone universal para os católicos.
Essa obra criou na mente de Afonso Lopes Vieira, que a descobriu no Museu de Arte Antiga, a necessidade de descrever, em verso, aquele encontro entre ambos. Chamou-lhe Romance de Santo António.
O poema inspirou a artesã de Leiria Helena Maria Ferreira a criar cerca de 200 cenas “de brincadeira, de amizade, de amor, do quotidiano de um homem bom e uma criança cheia de vida. De cumplicidade entre Santo António e o Menino Jesus”.
Na mostra exposta na biblioteca municipal de Leiria, podemos ver boa parte dessas peças. Celeste Afonso, gestora do projecto Leiria Cidade Criativa da Música da Unesco e coordenadora desta mostra, sublinha o papel dos escritos de Lopes Vieira na criação de peças em barro que ilustram “as tropelias de um menino e a sua cumplicidade com um homem bom”.
A exposição ficará patente até 31 de Agosto.
Criar ligações
O trabalho de Helena Maria ocupa a maior parte da mostra Cumplicidades. E percebe-se porquê.
“É uma excelente ceramista, embora tenha começado muito tarde. Tentámos perceber como criar uma ligação. Sabíamos que Afonso Lopes Vieira tinha uma paixão por Santo António e explorámos esse vínculo. Isto representa a um micro nível a estratégia de uma cidade criativa: olhar para o que se tem e tentar potenciá-lo, criando ligações com o passado, presente e futuro, a nível local, distrital e nacional”, refere Celeste Afonso.
Esta mecânica, adianta, pode ser aplicada a todas as formas de expressão artística.
“Santo António era, sobretudo, um ‘homem bom’ e o que a Helena consegue traduzir é esse homem bom, cheio de bondade. A ternura com que António está com o menino, nas peças, não é a ternura de um santo. É uma cumplicidade sempre presente e a bondade de um homem, uma bondade de pai para filho. Essa cumplicidade permite um foco maior na principal característica do trabalho da dona Helena: a vida e a expressividade das suas peças.”
Já o presidente da Câmara de Leiria, Gonçalo Lopes, recordou, na cerimónia de inaguração, a longa ligação da artesã à vida cultural da cidade e sublinhou que a exposição é um dos eventos que devolvem ao mundo físico os eventos culturais e de outros sectores da sociedade, que, até agora, estavam restritos ao mundo digital, devido à pandemia de Covid-19.
“As nossas vidas fazem-se de cruzamentos, uns mais felizes, outros menos. Este é feliz, pois liga um poema de um escritor de referência da cidade, uma obra de arte e na visão e o trabalho de uma artesã.”
Estava o Senhor Santo António/ Um sermão a decorar,/ Quando o Menino Jesus/ No livro lhe foi poisar,/ Tão bonito e tão alegre/ Que era mesmo de pasmar./ – Menino, olhe que amanhã / Tenho muito que pregar;/ Andam as almas perdidas, / Anda o demónio a tentar,/ Para vencer o demónio/ Tenho muito que estudar./ – António, tanta leitura/ Vai os olhos cansar,/ Nunca levantas cabeça,/ Nunca vais apanhar ar,/ Leva-me em cima do livro/ Vamos os dois passear./ – Mas, meu Menino,/ Amanhã tenho muito que pregar,/ Se me não ouvirem homens,/ Ouçam-me os peixes do mar./ As almas perdem-se todas/ E eu todas lhas quero dar. -/ António, as almas perdidas/ Sempre as havemos de achar,/ O dia está tão bonito/ Estão os cravos a cheirar,/ Se me não levas ao colo/ Co’os teus papéis vou brincar!
A “avó do barro”
Quando a neta tinha três anos, Helena Maria Ferreira, artesão conhecida como Lena do Zé Riscado, queria mostrar-lhe que a principal figura do Natal não é o “Pai Natal”, mas o Menino Jesus e o presépio.
“Ela tinha medo do Pai Natal que se fartava”, conta a artista. Helena Maria, que, nas suas primeiras peças assinava “Lena Leiria”, não sabia nada de olaria ou santaria. Não sabia o que eram teques, as ferramentas utilizadas para esculpir formas na argila, mas sabia o que queria fazer.
Usou rolos de papel de cozinha – “para não gastar muito barro” – e, à falta de teques, deu formas ao material socorrendo-se de palitos e colheres de chá. Foi assim que das suas mãos saiu um São José, figura que a tradição diz ter sido o pai adoptivo de Jesus Cristo.
“O princípio do meu trabalho, devo-o à minha neta e à minha nora. O seguimento foi a dona Rosina Poças que foi falar com o filho, que foi falar com um [LER_MAIS]escultor, para cozer as peças. Eu nem sabia que era preciso cozê-las. Foi esse senhor que me disse: ‘se a senhora fez este trabalho e não aprendeu em lado algum, não pode parar, porque lhes dá muita expressão e movimento!'”
Nos últimos 22 anos, a inspiração levou-a para lá da arte sacra e do trabalho em casa. Hoje, dá aulas a jovens e a adultos na Oficina do Barro, no antigo edifício do Banco de Portugal, em Leiria. “Chamam- -me ‘mestra’, mas até tenho vergonha. Sou uma simples artesã. É só isso que sou. Até o médico que me fez um cataterismo, há uns anos, disse que eu sou uma artista plástica. Senti-me a a subir de posto. Mas eu sou só uma artesã.”
Presença constante nas redes sociais, utiliza a página Lena do Zé Riscado, no Facebook, para dar a conhecer a sua arte. “Esta semana, publiquei um par do rancho a dançar e no Museu Escolar dos Marrazes está exposta uma colecção de peças com os jogos tradicionais; o berlinde, o pião, a cabra cega…”, diz, com inegável orgulho nos olhos visíveis atrás da máscara.
Ao longo da vida, Helena jamais parou. Fez de tudo um pouco e foi mestra em quase tudo. “Sou a mulher dos sete ofícios. Trabalhei muito tempo em malhas, à mão e à máquina. Apanhava malhas em meias de vidro, que ia buscar às lojas de Leiria. Passei pelos tempos livres para as crianças, onde ensinava a fazer tricot, crochet… Dizem que o primeiro ATL que houve em Leiria, foi o meu, na rua direita. Também fazia rissóis… Sou a senhora das malhas, sou a senhora das meias, sou a senhora do barro, sou a avó do barro!”
O pai, José Lopes Ferreira, vendedor ambulante e figura conhecida da cidade que chegou a figurar em postais do início do século de Leiria, era o “Zé Riscado” e foi numa espécie de homenagem que adoptou o nome artístico.
13 de Junho
Santo António de Leiria
Os mais distraídos não saberão que a vida do popular santo toca com a da região, pelo menos em duas questões. Na verdade, Santo António de Lisboa, em Portugal, e de Pádua, em Itália, no seu périplo pela Europa, passou por Leiria, mais concretamente pela Igreja da Maceira, tendo-se por lá demorado, usufruindo da hospitalidade do pároco local.
Esta informação consta do futuro roteiro de Santo António, que está a ser criado pelos municípios de Lisboa e de Pádua e que deverá ser conhecido na totalidade em 2021.
Mas há mais ligações de Santo António em Leiria. Embora o Dia da Cidade seja comemorado a 22 de Maio, por nesse dia de 1545 ter sido criada a diocese local, o dia da sua elevação a cidade é o 13 de Junho, que também é dia de Santo António.