O bichinho da Paleontologia picou-o em muito tenra idade…
Os meus pais são os fundadores do Museu da Lourinhã, estavam muito despertos para as questões da Arqueologia, da História e da Pré-história, também da Etnografia. Mesmo antes de existir o Museu da Lourinhã, já estavam despertos para isso. Desde que me lembro, ia para o campo com eles à procura de fósseis e de peças de Arqueologia. A minha primeira saída de campo, já digna de nota, foi um acampamento que fizemos de Espeleologia, no Planalto da Cesaredas, para explorar grutas. Eu tinha uns 4 ou 5 anos. Tenho fotografias muito giras, minhas e do meu irmão, de capacetes.
O seu irmão, Simão Mateus, também seguiu profissão idêntica. É director científico do Dino Parque da Lourinhã. A avaliar pelo caso da vossa família, Paleontologia parece ser uma área de grande empregabilidade.
Sim. Por acaso é. Os números não são muito grandes, porque são poucos os formandos em Paleontologia. Nem sequer existe licenciatura, só mestrado. A Universidade Nova de Lisboa tem o único mestrado em Paleontologia do País, em colaboração com a Universidade de Évora, e da última vez que fizemos uma estatística acerca da situação dos nossos estudantes, não encontrámos um único desempregado. Estavam já a trabalhar ou tinham avançado para doutoramento. E 74% estavam ligados à Paleontologia.
Quais são as características diferenciadoras no DNA de um cientista?
O cientista, paleontólogo ou não, tem de ser curioso em aprender mais sobre o que o rodeia, tem de ser trabalhador e tem de ter uma certa disciplina, porque não é um trabalho ‘das nove às cinco’. Tem de ser uma pessoa [LER_MAIS]empenhada, mesmo quando não tem um patrão a pedir-lhe para trabalhar. A ciência é o seu patrão. E tem de ser resiliente. Porque a ciência nem sempre é fácil e, num estado inicial da carreira, estamos muito dependentes de bolsas, que são competitivas.
Mas é compensador?
Não do ponto de vista financeiro. Mas o dinheiro não é tudo. É compensador porque estamos a descobrir o que mais nenhum humano descobriu. Quando descobrimos um osso, estamos a deitar luz sobre aquilo que não via a luz do dia há milhões e milhões de anos. Ao longo do seu percurso, quantos dinossauros já resgatou do passado? Não é fácil contabilizar, mas entre espécies, géneros, famílias, já baptizei 40, o que é significativo. Como o Miragaia longicollum, o Lourinhanosaurus, o Lusotitan, ou, mais recentemente, o Iberospinus. Todos espécies de dinossauros e de outros animais, que não eram conhecidos pela ciência.
Qual deles o fascina mais?
Aquele que ainda está por descobrir. É sempre o próximo. Porque o que nos motiva é sempre o descobrir de mais além.
O que distingue os dinossauros da Lourinhã?
A fauna é sempre diferente de local para local, de continente para continente. Mesmo actualmente, os animais e as plantas que encontramos em Portugal são diferentes daqueles que encontramos na Alemanha, no Japão ou nos Estados Unidos. Faz parte da biogeografia da fauna. Se formos para outro continente e a isso juntarmos uma escala geológica e temporal diferente, vamos encontrar animais bem distintos. Os que encontro em Angola são normalmente de ambientes marinhos, mais recentes, do Cretácico e do hemisfério sul. Cá, estou a trabalhar em ambientes continentais, Jurássicos e do hemisfério norte. Nunca vou encontrar duas espécies em comum entre estes dois locais.
O que nos falta saber sobre eles?
Tanta coisa… Não sabemos de que cor eram. E na maioria dos casos não sabemos exactamente o que comiam. É claro que um carnívoro come carne. Mas faria caça de emboscada ou caça activa? Caça em grupo ou individual? De espécies grandes ou pequenas? Comia carne putrefacta ou preferia animais vivos? Não sabemos quanto tempo vivia uma espécie. Não sabemos quantas espécies existiam. Há tanto por descobrir e coisas que nunca vamos descobrir.
O que nos ensina a Hollywood sobre a vivência destas criaturas?
Hollywood não está cá para ensinar, está cá para divertir. É uma máquina de entretenimento que faz filmes e às vezes filmes sobre dinossauros. E os filmes sobre dinossauros pouco ensinam. Quando muito, divertem e entretêm. É o seu papel. Mas, para fazer filmes, requer-se conhecimento sobre a mecânica e sobre o aspecto dos dinossauros, o que faz os paleontólogos pensar numa série de detalhes menos conhecidos. Por exemplo, a que velocidade um dinossauro podia correr? Como era exactamente o seu movimento e o seu tipo de passada? O cinema ajuda, porque para fazer um filme é preciso responder a estas questões e é preciso ir beber a uma base científica. É preciso contratar paleontólogos para ajudar a fazer os filmes. O que não quer dizer que sigam depois todas as recomendações dos cientistas. E claramente não o fazem. Temos que olhar para os filmes como entretimento. Mas ajudam a motivar o fascínio pela ciência e pelos dinossauros. Têm um papel fundamental nesse campo.
E o que dizer sobre os sons emitidos pelos dinossauros nessas películas?
São quase todos errados. Não sabemos exactamente como vocalizavam os dinossauros extintos, mas sabemos que há um parêntese evolutivo entre os crocodilos e as aves e tudo o que for válido para um crocodilo e para uma ave, em princípio, é válido para um dinossauro do Mesozoico. Eles não fazem rugidos como leões. No Jurassic Park, pegaram no som de um Ferrari, de um leão e de um elefante e fundiram-nos a computador. Mas os dinossauros não eram Ferraris, nem leões, nem elefantes. E possivelmente tinham uma vocalização mais próxima de um pio do que de um rugido. Mas desde que não se confunda isso com ciência… Os filmes são para entreter, os documentários para ensinar.
Seria cientificamente possível dar vida a um destes seres?
É o que fazemos todos os dias quando descobrimos ossos e os divulgamos. Somos um caçador invertido, que dá vida ao que já está morto. Mas passando dessa parte mais simbólica para o real, acho extremamente difícil. Duvido que alguma vez isso aconteça. Seriam precisas cadeias de DNA completas. É como ter uma pequena biblioteca, onde são precisos todos os livros para ter a informação que codifica um organismo. Se lançamos fogo à biblioteca, ficamos com restos de livros. Conseguimos extrair parte das letras, das páginas, mas não recuperamos a biblioteca toda. O tilacino, o lobo-da-tasmânia, extinguiu-se no século XX. Está preservado em formol, é um marsupial, e por isso nem precisa de uma placenta e de uma mãe para se desenvolver, e mesmo assim não conseguimos cloná-lo. E desapareceu ‘antes de ontem’. Se um dinossauro morreu há milhões de anos, acho muito improvável.
Há quem não saiba que as quintas estão cheias de dinossauros. E bem vivos.
Dinossauro é um grupo muito largo de répteis, que desenvolveram uma locomoção bípede. E há um ramo desse grupo que sobreviveu à grande extinção do final do Cretácico. Já tinham penas, já tinha um metabolismo acelerado. São as aves, que temos hoje, que se desenvolveram a partir desse grupo que sobreviveu. As aves são tão dinossauros como nós somos mamíferos ou primatas. Todas as aves são dinossauros. Os crocodilos são apenas primos.
Defende que somos o país com mais espécies de dinossauros por quilómetro quadrado.
Do registo fóssil estudado, nós somos o décimo país do mundo com mais espécies de dinossauros. Décimo não é o topo, claro. Mas se considerarmos que os cinco primeiros da lista são Argentina, Estados Unidos, Canadá, China e Mongólia, que são gigantescos…. Portanto, feitas a contas, somos o país com mais espécies de dinossauros por quilómetro quadrado. E de longe.
E Portugal tem sabido valorizar esse património?
A Lourinhã claramente tem. O Dino Parque é fruto dessa valorização. Mas há também o Museu da Lourinhã, a Sociedade Portuguesa de Paleontologia, que está sediada na Lourinhã, e uma série de empresas, cujos nomes e logótipos estão ligados aos dinossauros. Fazem com que os dinossauros sejam um dos principais motores económicos do concelho. É o conhecimento, a ciência, o turismo, a valorização do património que se tornam o principal motor económico. Isso é espetacular.
Mas é um caso isolado?
Também temos as pegadas na Pedreira do Galinha, por exemplo. E há um investimento real do Estado, de milhões de euros, para a salvaguarda do património e para financiamento de bolsas de doutoramento, de pós-doutoramento, para professores universitários, para o conhecimento. Não é suficiente, mas tem havido alguma atenção da parte do Estado. Mas quando temos um património desta envergadura, temos um papel acrescido de responsabilidade. E não há um papel acrescido de responsabilidade em relação a ouros países. Há muito bons exemplos em todo o mundo. Na China, constroem-se museus a cada canto onde se fazem descobertas, porque tentam valorizar o seu património. Eu gostava de vê-lo mais por cá. E também precisamos de mais legislação que proteja o nosso património. O nosso património não pode estar a saque. A lei que temos é insuficiente.
Leiria deparou-se recentemente com a vandalização do sítio arqueológico do Menino do Lapedo.
Infelizmente, a vandalização poderá sempre acontecer. Mas a Arqueologia está protegida do ponto de vista legal e a Paleontologia não. Se destruírem ‘um Menino do Lapedo paleontológico’, estamos muitas vezes manietados por não ter um enquadramento legal que possa sequer penalizar quem fez o dano. Um dos objectivos da Sociedade Portuguesa de Paleontologia é criar uma nova lei. Estamos a trabalhar nela. Queremos que todos os paleontólogos amadores, que têm um papel fundamental para a ciência, possam continuar a sua actividade. Mas que o façam de forma a que material que seja de importância nacional fique no País e acessível para a ciência. É importante esse equilíbrio.
Além dos dinossauros, que outras espécies existiram na região de Leiria e que devem ser resgatadas do esquecimento?
Durante o Jurássico não havia só dinossauros. Ainda havia mais mamíferos. Alguns dos nossos antepassados já existiam no tempo dos dinossauros, mas eram pequenos, tinham no máximo o tamanho de uma ratazana. Foi a extinção dos dinossauros que permitiu que esses mamíferos explodissem em tamanho e diversidade morfológica. Curiosamente, até são conhecidas mais espécies de mamíferos do que dinossauros no Jurássico português. E o sítio mais importante de todos a nível nacional, e talvez o sítio mais importante a nível mundial para o Jurássico Superior, para mamíferos, é a Guimarota, em Leiria. A mina de carvão da Guimatora foi explorada até aos anos 60 e mais tarde foi utilizada para exploração paleontológica pela Universidade Livre de Berlim. Foi o maior investimento paleontológico que alguma vez existiu em Portugal. Dali extraíram milhares de pequenos fósseis. A mina da Guimarota continua a ser o local mais importante de todo o mundo, para mamíferos do Jurássico Superior. O poço da mina ainda lá está e não há nenhuma indicação sobre um espaço daquela importância. É uma pena. Leiria tem a oportunidade de fazer um monumento, um pórtico, algo que assinale que aquele sítio é de importância global. Além disso, todo o distrito de Leiria é especialmente pródigo em fósseis. Desde a zona de Serra de Aire e Candeeiros, passando por Peniche, Caldas da Rainha e Alcobaça, ou pela costa de São Pedro de Moel, na Marinha Grande.
Como biólogo, como tem observado a pandemia de Covid-19?
Esta pandemia é uma das muitas que tivemos e que vamos ter. A seguir a esta virá outra, depois outra, depois outra. Faz parte da nossa ecologia, estas espécies que se aproveitam de nós. É normal que assim aconteça. Somos inteligentes o suficiente para saber mitigar esses problemas e temo- lo feito, através da criação de vacinas, máscaras, etc. Mas a pandemia teve efeitos não só na sociedade, na ciência, no ensino, como também na Paleontologia, fazendo atrasar todo o nosso trabalho de campo.
Quão próxima está a nossa espécie da extinção?
Podemos garantir que a nossa espécie se vai extinguir. A grande questão é se deixamos descendentes ou não. Todas as espécies evoluem, deixando descentes, descentes esses que já são tão diferentes, que já se consideram de uma nova espécie. Esse seria o melhor dos cenários. Outro cenário é tratarmos tão mal este planeta, que nos extinguimos todos.
A guerra e a questão nuclear podem acelerar o processo.
Se formos todos muito estúpidos, e às vezes temos sido, pode acontecer.
O processo de degradação do ambiente ainda é reversível?
Os danos que causámos, pela forma como maltratámos o ambiente, como fizemos aumentar o aquecimento global, estão feitos. E os estragos já não são reversíveis. Mas podemos mitigar esses danos. Não podemos embarcar na lógica do perdido por cem, perdido por mil. Se salvarmos o que ainda temos, ainda podemos recuperar algumas coisas.
Octávio Mateus, de 47 anos, é licenciado em Biologia, pela Universidade de Évora, e doutorado em Paleontologia, pela Universidade Nova de Lisboa, onde é professor. Preside a Sociedade Portuguesa de Paleontologia e integra os órgãos sociais do Museu da Lourinhã. A sua actividade profissional continua a repartir-se pela Lourinhã, de onde é natural, por Lisboa, onde lecciona, e por um conjunto lato de países, onde desenvolve projectos e expedições.
Grande parte do espólio encontrado à luz deste projecto está hoje numa grande exposição temporária no Museu de História Natural dos Estados Unidos. E antes de regressarem a Angola, estes achados ainda se darão a conhecer pela Europa, antecipa o paleontólogo.
Fora do País, Octávio Mateus soma várias expedições à Gronelândia e desenvolve ainda um projeto de escavação no Wyoming, nos Estados Unidos.
Por cá, tem trabalhado também no Algarve, no projecto que motivou a criação do Geoparque Algarvensis. Entre as suas mais recentes descobertas está o Iberospinus natarioi, dinossauro piscívoro, encontrado no Cabo Espichel.