No início, há um ano, falaram de objectos importantes, que “têm na cela” e “em casa”, e “contaram a história de vida deles” de modo “não verbal, só com movimentos”, explica David Ramy, coordenador do projecto Ópera na Prisão Mozart On que a SAMP – Sociedade Artística Musical dos Pousos dinamiza no Estabelecimento Prisional de Leiria – Jovens (EPL-J).
Até as Pedras Precisam de Raízes resulta do trabalho de co-criação desenvolvido nos últimos meses e tem estreia agendada para esta sexta-feira, 30 de Maio, no centro de artes performativas Pavilhão Mozart, localizado dentro da cadeia. O espectáculo – aberto a público de fora da prisão – eleva 18 reclusos ao estatuto de protagonistas, não só do texto e no palco, a cantar e a representar ao lado de profissionais que incluem a soprano Carolina Morán e o barítono Nuno Mendes, como, ainda, na parte técnica, a cuidar do som, da luz e da imagem.
Partir ou ficar?
A micro-ópera, que se baseia, também, nas conversas com familiares e amigos dos jovens do EPL-J, e em visitas aos lugares de onde são originários, toma como cenário uma estação rodoviária e pede emprestado o mito de Sísifo para questionar “se a pedra volta a rolar montanha abaixo por causa da gravidade ou porque sabe que o seu sítio é na base e não no pico”. Por outro lado, o clássico grego “pode ser uma metáfora da inconsequência da vida”, comenta o autor do libreto. “Fazemos coisas que sabemos que vão ter um determinado resultado e mesmo assim fazêmo-las”, explica Paulo Kellerman. “Se estivermos sempre em movimento, o que é que acontece às nossas raízes?”
Paulo Kellerman quis escrever uma narrativa “universal” com que “todas as pessoas” se podem relacionar, a partir da dinâmica entre alguém que quer partir e alguém que quer que o outro não parta. “Até que ponto a partida pode resolver alguma coisa?”. O escritor não esquece os anseios partilhados por quem está dentro da prisão quando se imagina do lado de lá do muro. “A esmagadora maioria disse que queria ir para um país distante. Marcou-me essa ideia da necessidade de ir para longe”.
Influências do hip hop
Até as Pedras Precisam de Raízes conta com partitura assinada por João Santos, para piano, trio de cordas, saxofone e voz, e contributos do filho, Tiago Santos, construídos com ferramentas do hip hop e do beatmaking. Os estilos “acabam por cruzar-se”, o que proporciona uma “conjugação interessante”, diz João Santos, que é o organista titular da sé de Leiria. “Tentei encaminhar a música escrita um pouco para o ambiente do hip hop, embora trabalhado de forma mais erudita”.
A micro-ópera explora, ainda, imagens registadas pelo fotógrafo Joaquim Dâmaso. “Como uma malga de sopa que recorda a avó, um íman que evoca a irmão ou luvas que representam o sonho de ser pugilista. Constrói-se uma narrativa visual onde o quotidiano da prisão se entrelaça com o imaginário e a identidade de cada participante”.
Esta sexta-feira, fecha-se um ciclo ao longo do qual os reclusos criaram três espectáculos: Sair da Bruma (com a coreógrafa Clara Leão), Visitação e, agora, Até as Pedras Precisam de Raízes. “O grande objectivo era que o centro de artes performativas Pavilhão Mozart ficasse completamente apetrechado de material e que os rapazes tivessem capacidade técnica para mexer nos aparelhos”, realça David Ramy. “Falta fazer um manual de instruções para que quando eles saírem dali tenham forma de passar informação aos outros que vierem”.
O projecto da SAMP no EPL-J beneficiou de financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian e da Fundação “la Caixa”. Está à espera de luz verde para uma nova edição.