São aos montes: vagueando solitários ou então formados em leque, finórios, presos à trela dos donos. É que moro num aglomerado urbano, nos arrabaldes de Lisboa, que praticamente vi nascer: chegava-se lá por uma serventia de pé posto, paralela à linha da CP, acessos deficientes mas com o atractivo de casas com mais de três salas, e ainda em conta para a época.
Nesse bairro foram comprando funcionários públicos, empregados bancários e profissões afins, quase todos em idades núbeis. Que aí se preparavam para construir vida de família, já que não o fazer até aos trinta tornava-se então suspeito: era a geração da guerra de África.
A urbanização, hoje com mais de 30 mil fregueses, foi-lhes assistindo paroquialmente ao nascer e, muitas vezes, ao casar dos filhos, que após a boda partiram, quase todos só para voltar cá de visita… O sonhado tempo de reforma veio a seguir.
Satisfeitos depressa os reprimidos apetites de “quando eu for reformado”, logo passaram a confrontar-se com o que fazer ao seu tempo, agora sem projectos e sem filhos. Usam-no em sonolentas tertúlias com vizinhos do bairro, ou no jogo das cartas, sob o toldo redondo do jardim público.
É que dos 27,5% por 100 jovens em 1961, os “idosos” passaram (2016) para 148,7% – havendo actualmente no País mais de 2,1 milhões de residentes acima dos 65 anos, numa população de 10,3 milhões. Ai!, pois, da nossa Segurança Social…
[LER_MAIS] E, apesar desses queimatempos, das excursões da igreja e das telenovelas, vão eles fatalmente interiorizando, num lampejo, o heideggeriano “ser-para-a-morte” que somos todos, mas para si de termo mais acelerado.
A sua casa, cuidada como um museu, tem quase sempre um silêncio dos cemitérios; e o quarto dos filhos, vazio, permanece intocado, à espera dum regresso impossível. Entram em cena os cães desta crónica, a preencher os afectos que tais filhos, longe, já não dão.
Os cães da minha rua, assim, ao contrário dos humanos, inverteram aquela pirâmide demográfica: gradualmente foram invadindo espaços reservados, centralizam os acontecimentos do bairro, acariciados como príncipes-bébés por todos os passantes; e, com as suas graças domésticas, fazem a nota de abertura das conversas de café.
Mas logo depois: “O Serafim, o do nº. 48, morreu! sabias?! – ataque fulminante ao sair do carro!” Segue-se um contagioso silêncio na mesa. De súbito, o inseparável rafeiro deste arauto corre desaustinado para os parceiros da canzoaria próxima, logo trava, alça a perna, e num jacto rectilíneo delimita o território sob o olhar muito embevecido do dono, já que ele, agora, só o consegue para as botas…
Possivelmente o próximo da lista! E então, sim, os filhos voltarão ao bairro: de fugida, gravata preta e uma coroa de flores…
*Advogado