São apenas algumas ruas e blocos de apartamentos, onde vive gente de toda a parte. Oitocentas pessoas, de acordo com a InPulsar. De Portugal, mas também do Brasil, de Marrocos, das antigas repúblicas soviéticas e de Angola, entre outros países, como o Nepal.
Em casa ou à mesa do café, tanto se fala português e mandarim como árabe e ucraniano. É o bairro do Hamadi, do Andrey e da Yaryna, da Elaine e do Mateus, onde se venera Alá na mesquita e o deus católico na igreja, a tradição cigana convive com a herança africana e os aniversários de família são alimentados a tagine, moqueca e feijão preto. Um território que é o mundo inteiro, ou quase, e que tem no cruzamento de culturas a maior força, garantem as instituições que ali actuam.
Quinta do Alçada: três religiões em diálogo pela primeira vez
Tremoços e couscous. Hamadi Haidar, 48 anos, é o orgulhoso proprietário do primeiro talho halal na Quinta do Alçada, mesmo ao lado do café onde a comunidade de Marrocos residente no bairro costuma juntar- se para manter a conversa em dia com a quase obrigatória meia de leite em cima da mesa.
Estima-se em 250 o total de imigrantes marroquinos a residir em Leiria e na região; já o número de muçulmanos é superior, provavelmente 400 ou 450. Entre eles, cinco irmãos originários da zona de Fquih Ben Salah, todos actualmente a viver na Quinta do Alçada. Hamadi, o primeiro a chegar, em 1994, fala árabe, un petit peu francês e também português, espanhol e italiano, depois de milhares de quilómetros na rua, a vender relógios, tapetes e casacos. “Antigamente, dias bons, dos escudos”. Agora a rotina é o talho Rahma Halal, onde, além da carne de animais abatidos de acordo com a lei islâmica, se encontram produtos tradicionais do Norte de África, incluindo chás, especiarias, pão, tâmaras e couscous. O sobrinho, com bacharelato em informática, dá uma ajuda.
Hamadi abre a galeria do telemóvel para mostrar as fotografias do filho que joga nos seniores do Sporting de Pombal, nome de guerra Rabi Haidar, formado nos escalões jovens do Marrazes. Se há coisa que portugueses e marroquinos partilham, é a paixão pelo futebol. Hamadi, apreciador de tremoços, caracóis e pastés de nata, tem mais três descendentes, dois em idade escolar.
A mulher veste-se à maneira tradicional, mas frequenta as aulas de português para estrangeiros do projecto Redes na Quint@, da associação InPulsar. Para o bairro, a família só tem elogios. "Gente boa. Abro de manhã, fecho à noite, descanso, como, bebo, mais nada". Tal como para Portugal: "Bom país, bom povo". Estar cá "é outra vida", sente-se "mais livre". A caminho do Ramadão, este ano entre 6 de Maio e 4 de Junho, Hamadi não foge aos deveres diários – e é por isso que o talho Rahma Halal, decorado com gravuras que representam Meca e passagens do Corão, é também o lugar onde cumpre algumas das cinco orações diárias.
Little Ucrânia. Na Quinta do Alçada, Yuriy Pogomiy e Yuliya Savytska descobriram um pedaço de Portugal que lhes lembra as urbanizações de Kamenets-Podilsky, a cidade onde cresceram, na Ucrânia. No momento de assinar a escritura, escolheram os prédios em U com relvado ao centro, uma espécie de janela para o passado, como o apartamento comprado a crédito é a garantia de futuro que querem deixar aos filhos, Andrey e Yaryna, sete e quatro anos de idade, ambos nascidos em Portugal. “Continuar a pagar renda não vale a pena, é melhor pagar ao banco”. Yuriy Pogomiy, 39 anos, em Portugal desde 1999, começou nas obras, está empregado numa fábrica de artefactos de betão e trabalha 12 horas por dia. “A democracia puxa pela pressão. As contas obrigam-te a correr”. Mais tarde, em 2006, chegou Yuliya Savytska: 35 anos, licenciada em Biologia na Ucrânia, é costureira numa empresa de Leiria.
Fora do trabalho, dão-se sobretudo com outros ucranianos. A rotina está organizada em função da estabilidade e dos filhos, para quem a Ucrânia é um postal demasiado distante. Andrey pratica karaté e quer ser polícia, em Portugal, onde estão os amigos, Yaryna gosta de dança e os pais contam inscrevê-la na escola Annarella Sanchez.
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Em Portugal apreciam o bom tempo, mas não morrem de amores pela praia. “Já fomos ao Algarve duas vezes, mas o nosso descanso preferido é floresta”. As férias são cá, Yuriy destaca o Oceanário de Lisboa e o Convento de Cristo em Tomar, Yuliya aponta o Parque dos Budas no Bombarral.
Em casa, a comida tem raízes no Leste da Europa, mas ele não vira a cara a um arroz de pato, bacalhau à brás ou sopa da pedra. Já celebram o Natal a 25 de Dezembro e também usam uma palavra portuguesa para falar da Ucrânia: “A gente tem sempre no coração o nosso País. Tipo, saudades, sempre”.
Brasil, brasileiro. Desde que Elaine Carvalho – o apelido do pai, português de Mortágua – trocou o Brasil por Leiria, as novelas portuguesas estão cada vez mais parecidas com as da Globo, quase cópia. Ela segue os episódios de Alma e Coraçãona SIC – e diz que “está óptimo”.
A conversa acontece no intervalo do curso para auxiliar de geriatria financiado pelo centro de emprego. Em Portugal, Elaine já trabalhou na cozinha de um centro hospitalar, numa fábrica de plásticos, onde conheceu o futuro marido, português, em restaurantes, nas limpezas, em lares de terceira idade. Vida dura, “um bocadinho”, porque “nada cai do céu”.
No apartamento da Quinta do Alçada vive com dois filhos: Mateus, de 19 anos, e Samuel, de 15, que já nasceu em Portugal e está a aprender violão pela internet.
Natural de Ipatinga, no interior de Minas Gerais, a mais nova de 10 irmãs, Elaine não gosta de futebol nem de Carnaval e não se queixa do inverno na Europa. Aos 50 anos de idade, garante que não troca Portugal pelo país onde nasceu. O Brasil “é bonito, é lindo, é tudo maravilhástico, mas é violento, é cruel”, diz Elaine. Cá, pelo contrário, valoriza a tranquilidade. “Aqui tem essa vantagem: vai seguro e volta seguro”. Para o bairro, não pede muito: uma pintura no prédio e jardins nos espaços públicos.
Dragão adormecido. Depois de 20 anos a acompanhar o território de todas as cores, na escola e na junta de freguesia (exerceu o mandato até Setembro), Isabel Afonso não tem dúvidas, “a Quinta do Alçada dava para escrever um livro”. Os últimos capítulos, no entanto, são sobre mudança. “Uma caminhada crescente, em que já se subiram muitos degraus”, afirma. Impõem-se novas páginas, porque o maior caldeirão de culturas em Leiria é, na opinião da professora e antiga autarca, um autêntico “dragão adormecido".
A associação InPulsar está na Quinta do Alçada desde Abril de 2016, através do projecto Redes na Quint@, que até à data envolveu 922 crianças, jovens e familiares, 217 dos quais imigrantes ou descendentes de imigrantes. Portugal, Marrocos, Ucrânia, Brasil, Angola, Quénia, Rússia, Espanha, Moçambique, França, Cabo Verde, Índia, Roménia, Timor-Leste, Guiné, Letónia, Grécia, Nepal, São Tomé e Príncipe, Estados Unidos, Canadá, Itália e Luxemburgo são as 23 nacionalidades representadas. O primeiro objectivo doRedes na Quint@ – que se estende ao Bairro das Almoinhas e a outras urbanizações limítrofes – é a inclusão social de menores provenientes de contextos desfavorecidos. O corpo técnico e dirigente da InPulsar acredita que “muitas mais-valias” da Quinta do Alçada “advêm da diversidade cultural”. Por isso, “a filosofia de intervenção” procura “alavancar as potencialidades desta diversidade, realçando as suas forças, os seus aspectos positivos, numa lógica de empoderamento comunitário”. Na sede doRedes na Quint@ – financiado pelo programa Escolhas – e nas várias actividades descentralizadas, convivem diariamente crianças e jovens de diferentes idades, culturas, nacionalidades e religiões, um contexto que estimula o diálogo, o respeito e a tolerância. Há apoio ao estudo e treino de competências pessoais, teatro, música e vídeo, informática e tecnologias digitais, dança e fotografia, numa estratégia que visa diminuir comportamentos de risco e ensinar a gerir emoções. Pobreza, emprego precário, baixos salários, baixas qualificações, falta de oportunidades e acesso limitado às novas tecnologias são alguns dos desafios identificados no bairro. Desde Janeiro de 2019, está em marcha um segundo projecto da InPulsar na Quinta do Alçada, com o nome Sob o Mesmo Céu, também com objectivos de inclusão social, aproximação entre culturas e fomento do sentido de comunidade. O financiamento é da Fundação Gulbenkian. Ao longo de três anos, 40 crianças e jovens entre os 7 e os 15 anos de idade vão trabalhar práticas artísticas com os colectivos Casota (audiovisual), Uivo (artes plásticas) e Til (arquitectura e design), com o propósito, entre outros, de criar uma rota de arte em espaço público, com 10 instalações, no território onde vivem.