Hoje acordei com o canto dos pássaros e com o toque dos sinos de uma igreja. Logo a seguir, da janela cimeira da minha sala de trabalho, assisti a uma performance maravilhosa: como se fosse um maestro, e ao mesmo tempo um coreógrafo, o vento pôs-se a dirigir uma sinfonia e um bailado executados, esforçadamente, pelos ramos das árvores e arbustos.
Entretanto, dei-me conta dos sons que me chegavam produzidos pelo labor das pessoas e, curiosamente, achei que também eles se encaixavam com harmonia neste espetáculo da natureza!
Dei comigo a atribuir a cada uma destas observações o mesmo valor: ao canto dos pássaros o valor da beleza pura e natural e lembrei-me de como esta beleza, quando assim o queremos, também se pode observar nas pessoas e isso nos faz tão bem; com os sinos da igreja, recordei o valor de preservar a identidade cultural de cada comunidade deixando de lado preconceitos, a maior parte das vezes produzidos pela ignorância e disparatadas generalizações; já a dança trabalhosa dos ramos das árvores transportou-me para o valor da empatia que nos obriga a sermos flexíveis como elas e assim evitarmos ruturas, que apenas, e só, servem para nos machucar; por último, com os sons produzidos pela humanização dos espaços veio-me à ideia o valor do trabalho enquanto gerador de uma riqueza administrada para servir a satisfação de todas as legítimas necessidades humanas. Pus-me a pensar e não deixa de ser engraçado.
No bairro da freguesia onde até há pouco tempo eu morava, também tinha pássaros, algumas árvores, uma torre de igreja e os sons dos homens e das suas máquinas, no entanto, nunca me foi possível ter a experiência estética que agora tive.
Porquê? Ora, talvez porque a presença das máquinas feitas e utilizadas pelas pessoas era tal que se impunha a tudo o resto. Porque os sinos da igreja também não tocavam ou se tocavam, não era como aqui e eu nunca os ouvi.
Lá, apenas a sirene de uma fábrica e o barulho dos carros se ouviam e só de vez em quando todo aquele ruído era colorido pelo [LER_MAIS] alegre e encantador conversar das crianças dos jardins-escola quando, em passeio, desciam à cidade.
Naquele bairro, onde moram e trabalham tantas pessoas queridas e simpáticas, como se já não bastasse o ter sido transformado num gigantesco e caótico parque de estacionamento, ainda nos revela uma triste realidade: a inadequação dos horários de trabalho de mulheres e homens com filhos para criar.
Todos os dias saem dos carros que por ali ficam, de manhã até ao fim do dia, adultos ainda jovens, de lancheira no braço. Imagino a sua chegada a casa, à hora de jantar, a satisfação do reencontro com os filhos, mas e depois?
Depois, com tanto em casa para fazer, o abandono dos filhos, à frente de um qualquer ecrã. Talvez por isso, já se me vai tornando insuportável o ouvir dizer que à escola cabe apenas o ensinar matérias e que a exclusividade da educação é das famílias. Pois será, mas quando?
Certamente não será num tempo que nas famílias não existe, porque dele o trabalho se apoderou. Mas voltando aos ambientes observados, o que me impediu, no meu antigo bairro, de ter também uma experiência estética?
Certamente a disformidade e o desequilíbrio dos elementos que constituem o seu ambiente. É como se árvores, pássaros, sons, carros, igrejas e pessoas jorrassem sobre um jardim, vindos numa torrente desenfreada.
Quem sabe talvez lhe falte um maestro que faça como vi fazer o vento na minha atual morada: alguém que coordene a sonoridade e o bailado daquele conjunto. Oxalá!
*Professora
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990