É uma das principais entradas/saídas de Leiria, mas não se apresenta como um digno cartão de visita da cidade. Falamos de Porto Moniz, uma zona que, nos últimos anos, viu acentuar a sua degradação, com o encerramento de várias empresas, como a Auto-Leiria e o posto de combustível existente nas imediações, e a falta de intervenção no espaço público.
Um retrato que irá mudar no curto e médio prazo, com a concretização de obras e projectos em curso. Nas antigas instalação da Auto- -Leiria está a nascer uma superfície comercial, com Pingo Doce e McDonald's, enquanto para o outro lado da rotunda, numa parcela de terreno da antiga prisão-escola, a Câmara tem projectado um parque de estacionamento com capacidade para cerca de 400 viaturas.
Encostado à A19, avançará a construção de um hospital privado (uma unidade CUF, do Grupo Mello) e uma nova urbanização com quase 500 fogos.
A aprovação deste loteamento, que na semana passada recebeu luz verde da Câmara, abrirá portas à concretização de um parque urbano, que ficará a curta distância do tão desejado Jardim da Almoinha, cujas obras deverão iniciar-se em breve.
O novo parque, associado à urbanização agora aprovada, ocupará cerca de 17 hectares nas traseiras do Aki, e nascerá em terrenos não urbanizáveis cedidos pelo promotor do loteamento.
A concretização dos projectos previstos para Porto Moniz permitirá requalificar uma zona degradada da cidade, que corresponde também a uma das principais portas de entrada/ saída de Leiria.
Poderá ainda aproximar a urbanização de Santa Clara à cidade, que, com a construção da A19, ficou isolada, por via pedonal, sem qualquer acesso ao outro lado da auto-estrada, nomeadamente, ao Campus 2do Instituto Politécnico e ao LeiriaShopping.
As próprias escolas do IPL, com a expansão da cidade para Porto Moniz, ficarão também mais próximas da urbe.
Pode, no entanto, haver o reverso da medalha, antevendo-se que, se não forem tomadas medidas adequadas, a nova ocupação daquela zona traga problemas acrescidos ao nível, por exemplo, do trânsito, agravando os congestionamentos já existentes em hora de ponta.
O caso Marquês de Pombal
A propósito da transformação em curso em Porto Moniz, o JORNAL DE LEIRIA recorda outras fases de crescimento da cidade, que, quase sempre, tiveram muito polémica à mistura e que fizeram correr muita tinta.
Um dos processos mais controversos foi o da Avenida Marquês de Pombal, apontado como um dos exemplos mais flagrante do “caos urbanístico” que marcou a expansão de Leiria nas últimas décadas.
Era para ser uma “zona nobre” da cidade, mas acabou por se transformar num “emaranhado de construções”, através, por exemplo, da ocupação de espaços que inicialmente estavam destinados a áreas verdes ou equipamentos e que acabaram tomados pelo betão.
“[na Marquês de Pombal] Há um pouco de tudo. Temos garagens que apenas existem no papel ou que foram, efectivamente, construídas mas onde não cabe um carro”, refere um antigo vereador.
Houve também quem comprasse um apartamento com “zona verde à frente e dos lados” e acabasse “apenas com betão” como vista e chegou a construiu-se um bloco extra entre dois que estavam no loteamento aprovado.
Polémica foi também a edificação das Galerias de São José e do edifício onde está o Tribunal de Trabalho, cujo alinhamento avançou em relação aos restantes blocos.
[LER_MAIS] Para tentar “compensar” o excesso de construção na Marquês de Pombal, o município ainda quis classificar a Villa e a Quinta da Portela, localizadas nas traseiras da avenida, como zona verde, mas o proprietário (já falecido) insurgiu-se, não aceitando pagar por erros alheios, e o PDM viria a considerar como urbanizável a parte da quinta, para onde existe um processo de loteamento.
“A Marquês de Pombal era um bom local para a ocupação urbana. Já Korrodi [no início do século XX] defendia que a cidade devia crescer para aquela zona, ocupando a encosta até à Cruz da Areia. Mas o modelo de ocupação da avenida não foi o melhor”, constata Rui Ribeiro, arquitecto, que mesmo assim considera que, em termos de ocupação, houve erros “piores” na cidade, apontando o caso do Vale da Cabrita.
Na última entrevista que deu, publicada em Abril de 2013 no JORNAL DE LEIRIA, Lemos Proença, presidente da Câmara de Leiria entre 1982e 1998, período em que foram edificadas algumas das urbanizações mais contestadas na cidade, falou do caso da Avenida Marquês de Pombal.
O antigo autarca, falecido há dois anos, alegava que a urbanização que o “perseguiu” durante os seus mandatos como “um mau exemplo” foi aprovada antes da sua chegada ao município e já incluía as Galerias de S. José e outras que foram sendo desenvolvidas.
“Ainda se corrigiu alguma coisa, mas havia direitos adquiridos”, justificava. Vale da Cabrita, um imbróglio ainda por resolver Seria nos primeiros anos de governação de Lemos Proença que a Câmara aprovaria a também polémica urbanização do Vale da Cabrita, que acabou em tribunal num processo que se arrasta até aos dias de hoje.
Em causa está a execução de índices de construção acima do que previa o loteamento original, aprovado em 1986 e que compreendia 50 lotes. Para tentar emendar a mão no excesso de edificação, a autarquia aprovou, em 1995, uma alteração ao alvará de loteamento, que estabelecia que três lotes passariam a destinar-se a moradias unifamiliares em vez de blocos de apartamentos.
Ora, essa alteração ocorreu sem conhecimento de um dos co-proprietários de vários lotes de terreno, que moveu um processo contra a Câmara. Em 2008, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) confirmou a decisão da primeira instância, que considerou nulo o alvará de alterações e que determinou a “demolição dos edifícios já implantados ”.
A sentença não seria executada e, depois de várias tentativas, o imbróglio jurídico em torno daquela urbanização poderá estar a caminho da resolução com a elaboração de um Plano de Pormenor, que, contudo, ainda não entrou em vigor.
Para o arquitecto Rui Ribeiro, o Vale da Cabrita “é um dos grandes desastres de modelo de ocupação”, devido à densidade de construção, colocada “numa encosta com um declive na ordem dos 15% e com acessos deficitários”.
“É uma autêntica vergonha. As casas até são óptimas, mas estão em cima umas das outras, não se cumprindo as distâncias previstas nos regulamentos e os acessos e arranjos exteriores são péssimos”, constata um antigo vereador.
Uma rotunda, dois postos de combustível e um drive-in
Muito controversa seria também a edificação em torno da rotunda da Avenida Nossa Senhora de Fátima, um dos principais pontos de entrada/saída na cidade que se encontra hoje ladeado por dois postos de combustível, um estabelecimento da cadeia McDonald's com drive in e blocos de apartamentos.
João Eliseu, antigo vereador na Câmara, recorda as “grandes discussões” travadas no executivo por causa desses licenciamentos. Segundo conta, os eleitos do PS ainda propuseram a criação no local de uma passagem desnivelada, mas “já não podia ser feita devido ao compromisso que havia” para a instalação de um dos postos de combustível, no âmbito do processo de loteamento da urbanização Quinta do Taborda.
“A rotunda encolhia ou alargava em função da perspectiva de ter um ou dois postos de combustível. Um dos privados, quando estava para avançar o outro [empreendimento], queria a rotunda maior, para inviabilizar a concorrência. Quando era sozinho, pedia- a mais pequena para poder fazer um posto maior”, recorda uma fonte ligada ao processo, que considera “um escândalo” a aprovação do McDonald's naquele local. “Já não havia espaço para mais nada. O tempo veio confirmar isso mesmo”.
Numa primeira fase, a Câmara ainda chegou a chumbar a pretensão instalação do drive-inda McDonald's. Em 2007, o pedido de viabilidade foi recusado, com a autarquia a sustentar essa posição com os impactos no trânsito na zona, nomeadamente na variante que, entre outros aspectos, foi construída para permitir um acesso “fácil e rápido ao hospital distrital, o que poderia ser dificultado pela instalação do drive-in”, noticiava então o JORNAL DE LEIRIA.
Apesar disso, o projecto foi aprovado e hoje é frequente formarem-se filas na rotunda para acesso ao estabelecimento.
Em meados da década de 90 do século passado seria aprovada a urbanização da Nova Leiria, que esteve longe de ser consensual. A nova zona urbana estava abrangida pelo perímetro de rega do Vale do Lis e implicou a desanexação de terrenos da Reserva Agrícola Nacional.
Em troca da aprovação do loteamento e da desafectação de áreas daquela reserva, os promotores cederam uma vasta área para ajardinar. Caberia depois à Câmara a responsabilidade de executar o Jardim da Almoinha, que seria uma peça fulcral para garantir a expansão harmoniosa daquela zona, o que acabou por não acontecer.
Vinte anos depois, o jardim ainda não saiu do papel – espera-se que saia entretanto – e a forma como a urbanização se desenvolveu também não cumpriu totalmente o objectivo inicial de se tornar numa área “nobre” da cidade e de ligar duas zonas que então estavam em grande desenvolvimento: os Marrazes e Gândara dos Olivais.
“Com certeza que não foi tudo bem feito. Todos cometemos erros. É preciso, no entanto, ter em atenção as épocas. Naquela altura, havia uma grande pressão na construção, consequência de factores diversos, como a enorme procura. Cada época define a urbanização”, disse Lemos Proença, na entrevista publicada em 2013 no JORNAL DE LEIRIA.
“Pior do que a especulação imobiliária foi a especulação fundiária”
“É um pouco difícil escolher o pior [da expansão urbana de Leiria]”. Quem o diz é o arquitecto Rui Ribeiro, que confessa a indecisão entre a Avenida Marquês de Pombal e o Vale da Cabrita. Se a primeira até não era um “mau local” para a ocupação urbana, acabou por falhar no “modelo de ocupação”. No Vale da Cabrita resultaram “mal” os dois aspectos.
Esses são, no entender do arquitecto, dois exemplos do “crescimento anárquico” e até “um pouco trágico” que Leiria registou nos últimos “40 a 50 anos”, em que “quem definia as prioridades de crescimento urbano foram os especuladores fundiários”.
“Pior do que a especulação imobiliária foi a especulação fundiária que permitiu transformar solos de matriz rural em urbanos”, defende Rui Ribeiro. O técnico nota que esse não foi um problema exclusivo da cidade do Lis, que “cresceu para onde os promotores tinham terrenos baratos disponíveis”. O mesmo aconteceu “em Aveiro e Coimbra e outras cidades com grande crescimento, sobretudo, a partir dos anos 70”, acrescenta.
“O problema de Leiria e de outras cidades similares é que a expansão urbana se fez através do somatório de loteamentos que sucessivamente se soldaram uns aos outros. Se observarmos o tecido urbano, chegamos à conclusão de que Leiria é feita da soma de uma série de acções de privados”, reforça um outro arquitecto, que pede para não ser identificado, chamando ainda a atenção para a falta de “qualidade urbanística” da generalidade dos loteamentos.
O presidente da Adlei (Associação para o Desenvolvimento de Leiria), João Poças Santos, aponta também como um dos aspectos mais criticáveis do urbanismo em Leiria o facto de o crescimento se ter feito como “uma mera soma de loteamentos”. Além disso, alega, tem havido “falta de uma visão global e estratégica da cidade” e “uma postura hiperliberal no que diz respeito ao papel dos poderes públicos, em especial os municipais, face aos promotores privados”.
“Há uma capitulação na defesa do interesse público por parte desses poderes”, acrescenta aquele dirigente, para quem a “falta de transparência e de participação pública nas principais decisões no âmbito do ordenamento, urbanismo e ambiente” é outro dos erros cometidos “ao longo das últimas décadas (incluindo o passado recente)” na expansão da cidade.
Na sua ultima entrevista, concedida em 2013 no JORNAL DE LEIRIA, o antigo presidente de Câmara Lemos Proença, admitia que “houve erros” devido a factores como a “grande pressão na construção”, recordando ainda que “alguns críticos chegaram ao ponto de chamar o arquitecto Gonçalo Ribeiro Teles para se pronunciara sobre o urbanismo de Leiria, tendo ele afirmado que o que cá encontrara era normal”.
PDM deviam prever demolições
Em tempos e com ironia à mistura, Gonçalo Ribeiro Telles, um dos mestres da arquitectura paisagística no País, chegou a dizer que a solução para o caos urbanístico do Algarve seria um “vasto” plano de demolições. Rui Ribeiro, arquitecto de Leiria, não vai tão longe, mas admite que, no futuro, os PDM também irão prever demolições. “Será esse o caminho”, antevê.
Já em 2015, nas jornadas de ambiente e desenvolvimento da associação ambientalista Oikos, o arquitecto José Charters Monteiro defendia que qualquer PDM devia ter “uma criteriosa carta de demolição de edifícios”.
Nessa ocasião, o arquitecto (autor de um texto de opinião sobre ordenamento e urbanismo disponível no site do JORNAL DE LEIRIA), explicou que na carta de demolição deveriam constar imóveis “sem qualidade construtiva” ou que estejam “erradamente implantados em vales, encostas de inclinação não apropriada e com usos ou funções desadequadas ao local que ocupa”.
No seu entender, faria também sentido incluir nessa carta de demolição imóveis “isolados de uma continuidade urbana” ou que “subverterem a escala” da envolvente. “Qualquer edifício, por mais privado que seja, possui uma dimensão pública e, como tal, deve ser regulamentado”, afirmou o arquitecto, com ligações a Leiria.