Acredita que a Europa actual, maioritariamente leiga, mas de fundo cristão, poderá alguma vez acolher as vagas de muçulmanos que cá procuram refúgio? Quem acabará por se adaptar a quem?
Não tem havido moderação, mediação ou temperança. É evidente que, sempre que povos diferentes se encontram, se não existir flexibilidade mental de um lado e outro, há conflito e sofrimento. Quem chega a uma nova cultura é natural que se procure adaptar sem abdicar dos princípios e valores fundamentais da sua própria cultura, religião ou tradição espiritual. O próprio Cristianismo também começou com um refugiado – Cristo, a sua mãe e São José eram refugiados, e estamos a comemorar uma família de refugiados. É paradoxal que uma cultura que se diz cristã não se abra ao outro, não pratique o fundamental da tradição cristã e abraâmica de acolher bem o estrangeiro. Esses valores estão na tradição cristã, mas o problema é a sua colocação em prática, por parte dos cristãos. A nossa civilização há muito que se diz cristã, mas o que é posto em prática não são os valores cristãos. Uma civilização realmente cristã, só poderia acolher o outro e respeitar a diferença.
Ao mesmo tempo que as relações entre Portugal, Angola e outros antigos territórios coloniais portugueses se estão a estreitar, teme pelas relações entre o Brasil de Bolsonaro e o nosso País?
As relações entre os povos e culturas passam por outros caminhos e dimensões que não são apenas as relações entre Estados. Bolsonaro ainda é uma incógnita e não sabemos se irá colocar em prática tudo o que anunciou – esperemos que não. Quando alguém tem um discurso extremista, muitas vezes, após a eleição não coloca em prática tudo o que prometeu na campanha. Estive no Brasil, duas semanas após a eleição, e encontrei muitos brasileiros completamente deprimidos, a pensar em sair do país. Professores, académicos e muitos outros, não apenas intelectuais queriam vir para Portugal. O Brasil tem imensas potencialidades no seu povo, na sua cultura e acredito que não será um dirigente político que deitará tudo a perder. Há uma certa tensão e desconfiança entre brasileiros e portugueses, mas há uma ligação pelo facto de falarmos a mesma língua, somos povos do Sul, com afinidade cultural e gostamos de desfrutar da vida de um modo que não é apenas o de uma civilização industrialista. Seria interessante um estreitamento nas relações entre os povos de língua portuguesa, que não passasse só pela fachada das relações entre Estados. Seria bom que os portugueses conhecessem mais as culturas brasileira, angolana ou moçambicana, e o mesmo da parte dos povos que falam português.
Leia aqui a primeira parte da entrevista
“Odiar é tomar veneno todos os dias, na esperança de que o outro morra”
Não conhecemos a nossa família?
Não conhecemos os povos que resultaram da nossa aventura histórica, com tudo o que ela teve de bom e de mau. Em Portugal, há a tendência para uma certa culpablização, como se agora fôssemos os mesmos que, há 500 anos, fomos pelo Mundo e vivemos do tráfico de escravos. Não somos! Há que desconstruir essa imagem traumatizadora, quer do colonizador quer do colonizado, e começar um novo ciclo.
Um Quinto Império?
Sim, a ideia de Agostinho da Silva. Nestes dois últimos anos, tive oportunidade de ter estado em [LER_MAIS] Goa, em Macau e há ali um interesse. Há lá mais pessoas hoje a querer aprender português. São coisas interessantes que poderiam conduzir à aproximação dos povos de língua portuguesa e a criar-se uma verdadeira comunidade lusófona, inspirada por valores de convivialidade e humanismo, que estão presentes na nossa tradição literária e filosófica, e que Agostinho da Silva tanto prezava e considerava que poderia ser uma alternativa a este ciclo de civilização que está perante uma grande crise.
A sociedade actual conseguiria acolher e valorizar um homem como Agostinho da Silva?
Sempre que se fala dele ou as pessoas tomam contacto com as suas ideias, há uma ressonância enorme. Sou um dos gestores da Página Oficial da Associação Agostinho da Silva, no Facebook, e sempre que lá se publica um excerto dele há milhares de gostos e partilhas. Os comentários referem-no sempre como "grande sábio" e "um homem destes é que faz falta". “Um homem santo…” Porém, da parte do Estado há um alheamento em relação à sua mensagem, do mesmo modo que não há uma promoção, até estratégica, dos valores da cultura portuguesa, dentro de Portugal, para não falar entre a comunidade lusófona e Mundo. Estamos num momento extremamente oportuno, onde Portugal está na moda e há cada vez mais turistas a vir cá. Além de oferecermos boa comida e bebida, poderíamos oferecer a cultura portuguesa e dar a conhecer Portugal ao Mundo além de Fernando Pessoa. Há as Cantigas d'Amigo, há Pascoaes, há Natália Correia, há Raul Brandão ou Almada Negreiros, há tantos! E há Agostinho da Silva, que antecipou em 50 anos, várias grandes questões do mundo contemporâneo. É uma pessoa que viu muito para lá do seu tempo e todos ganharíamos se o conhecimento da sua obra fosse mais estimulado.
Em 2016, foi candidato anunciado às eleições presidenciais com o lema "Outro Portugal existe". Era uma chamada de atenção para o maniqueísmo de que fala?
Há muito mais além deste Portugal que, aparentemente, se reduz às notícias que vêm na comunicação social dominante. Há um Portugal que não se limita a tricas políticas, que não se limita ao futebol, não se limita ao escândalo e corrupção, nem a jogos de interesses e de política económica, mas há um Portugal de pessoas que estão a investir em caminhos alternativos, com pessoas que se estão a dedicar a formas de vida mais saudáveis, sustentáveis e alternativas, em termos pedagógicos, éticos, de alimentação… há pessoas que estão a criar comunidades no interior de Portugal, onde vivem, de forma mais sustentável, mais justa, mais em comunidade, mais em colaboração e menos em competição. Há muita coisa a acontecer em Portugal, tal como no resto do Mundo. Esse "Outro Portugal existe" era uma ideia de plataforma que criasse visibilidade a esses movimentos alternativos que, muitas vezes, também não têm consciência suficiente uns dos outros e convergir para uma alternativa à civilização dominante, de hoje.
Até 2014, foi presidente do PAN, como vê as recentes polémicas à volta do partido? É fácil fazer piadas com as medidas que o partido defende?
A tendência dos seres humanos é para gozar com o que não entendem. Se fôssemos mais cuidadosos e olhássemos para dentro, veríamos que a nossa motivação para essas atitudes tem a ver com a ignorância. É fácil ridicularizar propostas políticas ou ideias que não falam apenas de seres humanos, mas que chamam a atenção de que o ser humano deve tomar consciência da necessidade de bem-estar de todas as formas de vida à face da Terra. Pertencemos à Natureza, mas achamos que estamos fora e acima dela. Afastei-me do PAN, há alguns anos, pois deixei de me rever na política convencional e houve questões internas e lutas pelo poder que me levaram a afastar e a preferir ter uma intervenção pública cívica, mais voltada para a espiritualidade e cultura. Isto não quer dizer que não continue a achar que é importante haver uma política que se abra além das questões meramente humanas e reconheça que somos Natureza e que temos interesses fundamentais que partilhamos com as outras espécies e seres vivos.
Há quem diga que, em Portugal, não tendo um Podemos, tivemos um PAN. Concorda?
Sim, embora entenda que o Podemos, ainda assim, foi um fenómeno muito mais significativo do que o PAN. Aliás, uma das razões que me levaram a afastar do partido foi o facto de ele ter tido uma vida interna atribulada. No início, havia muitas pessoas, dentro do PAN, que o queriam focar quase só na questão animal. Defendi, desde logo, que a nossa visão deveria ser mais alargada. Aliás, a alteração recente do nome para Pessoas Animais Natureza foi algo que sempre defendi, com muita oposição. Sempre disse que o PAN não se poderia limitar a questões de bem-estar animal, mas deveria ter uma visão mais holística e investir, fortemente, num novo modelo social e económico para o País. O Podemos procurou mais esse sentido. Ao PAN faltou e continua a faltar uma visão mais global. O partido vai propondo medidas, todas elas boas, saudáveis e desejáveis, nomeadamente na relação com os animais e questões ambientais, mas, se formos a ver bem, falta uma ideia para uma sociedade que se pretende construir, que faça com que o PAN se assuma como uma força política alternativa, que não proponha apenas reformas pontuais, que, por vezes, parecem ser a reboque do PS. O que queremos em termos sociais, o que queremos em termos económicos? Mesmo que isso, agora, pareça uma coisa estranha e utópica, mas é necessário ser mais ousado, para que outras bases de apoio vejam no PAN uma força alternativa, que preconize uma sociedade mais justa, com menos clivagens, com propostas para a Cultura e para a Educação.